Doenças fictícias

José Fernando

Figura agradável e pitoresca a nossa querida tia. Expressão sempre jovial, porte de uma verdadeira matrona romana, ciosa de suas responsabilidades familiares e generosamente prestativa. Na condição de esposa de respeitável meirinho da Comarca de Cataguases, MG, usufruía de uma vida estável e tranquila permitindo-se, com tempo de sobra, experimentar e elaborar acepipes variados o que a tornava um pouco rechonchuda e incrivelmente bonachona.

Sentava-se à varanda de sua residência ao entardecer, impreterivelmente após ouvir o apito da antiga fábrica de tecidos, localizada um pouco adiante de sua casa, para acompanhar a movimentação das moças que trocavam de turno. Era engraçada de se ver em sua cadeira de ferro com almofadas grossas, tricotando infatigavelmente, para as quermesses da igreja, vestidinhos infantis e belos cardigans para bebês com aquela expressão de quem está sempre com “um olho no padre e outro na missa”, dando conta do artesanato e ao mesmo tempo saboreando as novidades que os transeuntes lhe contavam, en passant. Sempremuito ativa, as vezes até um pouco agitada, confundia suas mãos errando pontos chaves do tricô tendo em vista que necessitava frequentemente de se abanar, com seus leques coloridos, de motivos chineses e indianos, indispensáveis naquela cidade de atroz canícula, pois o verão lá parece nunca ter fim. À parte de muitas excentricidades, uma delas se destacava pela seriedade pela qual levava a efeito a sua saúde, ou mais precisamente, suas pseudo doenças, talvez a popular hipocondria.

 Ao receber suas visitas apressava-se em retirar de uma bem conservada cômoda bombê Luis XV, de madeira maciça quase centenária, a sua coleção de receitas médicas, caprichosamente enlaçada por fitilhos coloridos e as exibia com brilhos nos olhos de tanta satisfação. Era daquelas pessoas que nunca se deve perguntar como vai a saúde, porque, enquanto ela não conseguir provar que está mais doente do que quem perguntou ela não lhe dará trégua. Para encerrar o caso, tia Bárbara viveu até os 87 anos e morreu, segundo os mais íntimos, vendendo saúde.

Bem, deixando de lado o viés divertido podemos adentrar na fria realidade dos fatos e analisar como a Ciência Médica cuida desta situação. (1) A hipocondria, como moléstia, faz parte do grupo de Transtornos de Ansiedade.  O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) indica-a como “Transtorno de Ansiedade de Doença. A terminologia médica classifica a hipocondria como uma preocupação exagerada, às vezes até irracional, com ter ou contrair doenças e o diagnóstico confirmativo se obtém cotejando    critérios como grau de intensidade acentuado, período mais prolongado, crises persistentes etc.” (2) Analisando vários tipos de transtornos Robert L. Leahy, Ph.D. pela Universidade de Yale, escritor e psicoterapeuta americano diferencia o processo psíquico de ruminação de pensamentos negativos, próprio dos hipocondríacos, como diferente da preocupação com doenças, comum a todo ser humano. Segundo ele: “as pessoas que tendem à ruminação têm maior probabilidade de ficar e se manterem deprimidas. Recorrendo ao indispensável léxico o termo “ruminar” advém do comportamento alimentar dos animais ruminantes os quais regurgitam e, novamente, remastigam os alimentos o que ocasionou a interpretação, em sentido figurado, de cogitar e meditar profundamente, isto é, “mastigar, regurgitar e remastigar” pensamentos pessimistas com relação à possibilidade de estar ou vir a ficar doente. (3) O tratamento indicado pelos profissionais da área, é a psicoterapia-cognitiva-comportamental, uso de medicamentos quando associada a outros transtornos psíquicos e as sempre recomendadas:  atividades físicas, alimentação saudável e mudança de atos nocivos para atitudes mentais sadias e comportamentos positivos.

Outra patologia, também bastante peculiar a “Síndrome de Münchhausen”, às vezes, confundida com a hipocondria, é uma doença psiquiátrica em que o paciente, de forma obsessiva, consciente e continuadamente dá causa, provoca ou faz simulações de sintomas de doenças, carente que se acha de afetividade ou de atenção de médicos. Diferencia-se da hipocondria, porque nesta o paciente acredita piamente ter uma doença, enquanto o portador da síndrome de Münchhausen sabe, consciente ou inconscientemente, que não tem nenhum mal, mas provoca intencionalmente os sintomas de alguma enfermidade, chegando até mesmo a contraí-la. O tratamento também segue os cânones da psiquiatria oficial com remédios próprios e terapia cognitivo-comportamental.

Como constatamos acima, a Ciência Médica trata dos sintomas físicos com medicamentos específicos, visando a combater os efeitos maléficos da pretensa enfermidade. Por outro lado, para descobrir as causas do transtorno, o Profissional da área busca, por meio da Psicanálise, descobrir as causas dessa anomalia, investigando a existência de acontecimentos nefastos que poderiam ter traumatizado o paciente na sua fase infantil. Cogita, também, da possibilidade de ele ter vivenciado doenças graves e perturbadoras próprias ou de familiares e amigos. Pode-se considerar, também, como predominante fundo psicológico, a inconformação com a finitude da vida, por parte de certos indivíduos, ocasionando esta angustiante expectativa da hora final, razão pela qual os faz imaginar doenças fictícias e os impele à procura obsessiva de fármacos capazes de prolongar cada vez mais a existência física.

 Nada obstante, a Doutrina Espírita descerra as cortinas do tempo e traz a lume as viciações do passado, que não foram por lá resolvidas. Pela lufada esclarecedora e sensata da Doutrina adentra primeiro o vento escaldante da lembrança infeliz do ontem para, em seguida, prevalecer hoje, em nosso íntimo, como brisa suave de redenção e esperança, a oportunidade bendita de superação de traumas e neuroses que remanesceram de nossos crimes do passado. (4) Vale lembrar a abalizada orientação de Emmanuel quando nos ensina: “No que se refere aos doentes, os cientistas ateus apenas enxergam o corpo na alma e os religiosos extremistas apenas enxergam a alma no corpo; as inteligências sensatas, porém, observam uma (a Alma) e outro (o corpo), conjugando bondade e medicação nos processos de cura”.

Intrigante caso de auto obsessão narrado por André Luiz no clássico livro “Nos Domínios da Mediunidade” (5) nos remete a um exemplo que pode ser considerado, pela ciência médica, como síndrome de Münchhausen ao analisar “O caso Libório”. O autor espiritual, acompanhando um grupo de Espíritos trabalhadores em visita a um hospital na região do Umbral, se depara com uma situação para ele inusitada. Uma senhora, desprendida do corpo físico pelo sono, após ser devidamente esclarecida sobre sua situação, se recusa a abandonar o processo de obsessão que ela, encarnada, infligia em seu esposo desencarnado. André então pergunta ao seu orientador Áulus se esta mulher não seria aquela que fazia vários pedidos de ajuda espiritual na Instituição Espírita ao qual se vinculava, alegando diversas doenças físicas que a perturbavam. Áulos confirma e explica que esta cura é o que ela julga querer, entretanto, no íntimo, alimenta-se com os fluidos enfermiços do companheiro desencarnado, ainda em processo de desequilíbrio espiritual, e apega-se a ele, instintivamente, criando para ela doenças físicas fictícias que, ao final, acabam por se instalarem realmente em seu corpo. Constata-se, neste caso, uma auto obsessão perfeitamente comparável, pela ciência médica, à “Síndrome de Münchhausen” tendo em vista que esta senhora, mesmo sabendo que não estava doente, provocava em seu organismo sintomas patológicos variados em consequência de sua forte inconformação com o falecimento do esposo.

Enfatiza o abnegado instrutor:

– “Milhares de pessoas são assim. Registram doenças de variados matizes e com elas se adaptam para mais segura acomodação com o menor esforço. Dizem-se prejudicadas e inquietas, todavia, quando se lhes subtrai a moléstia de que se fazem portadoras, sentem-se vazias e padecentes, provocando sintomas e impressões com que evocam as enfermidades a se exprimirem, de novo, em diferentes manifestações, auxiliando-as a cultivar a posição de vítimas, na qual se comprazem.”

Retomando a narrativa inicial podemos dar por encerradas as nossas reflexões com uma inquietante dúvida. Em quais dos casos aludidos poderíamos encaixar a nossa estimada tia Bárbara?

Hipocondria? Síndrome de Münchhausen? Obsessão? Ou auto obsessão?

Revendo na memória o transcorrer de nossa convivência familiar, advém-nos o saldo de uma vida relativamente feliz, sem graves danos físicos ou morais. Tia Bárbara era pessoa do Bem, extremamente dedicada à família e abnegada serva de seu esposo e seu filho único, como de costume às mulheres de sua época. Podemos, talvez, fazer algumas conjecturas reencarnatórias imaginando que ela poderia ter clinicado em outras vidas e, na atual existência, por motivos que desconhecemos, se viu privada de laborar na área médica. Terá então naqueles tempos traído o juramento de Hipócrates se servindo do conhecimento médico para deleite próprio e não a serviço da Humanidade?

Enfim, permanece ainda essa dúvida, e, quem sabe um dia nos reencontraremos em aprazível estância espiritual, em longas tertúlias, para trocar experiências e satisfazer nossa curiosidade acerca de tão peculiar personalidade. Se o merecermos, é claro!.

1- Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5): TRANSTORNO DE ANSIEDADE DE DOENÇA – CID F45.21, página 359.

2- LEAHY, Robert L. – “Não acredite em tudo que você sente: Identifique seus esquemas emocionais e liberte-se da ansiedade e da depressão” -tradução Sandra Maria Mallmann da Rosa; revisão técnica: Irismar R. Oliveira – Porto Alegre – Artmed,2021 – pag.169.

3- https://www.tuasaude.com/terapia-cognitivo-comportamental/

4- EMMANUEL, Espírito – Seara dos Médiuns- (psicografado por) Francisco Cândido Xavier – 19. Ed, – 2ª reimpressão- Rio de Janeiro- FEB, 2010- pag. 271- Mediunidade e Doentes.

5- ANDRÉ LUIZ-, Espírito “Nos Domínios da Mediunidade” (psicografado por Francisco Cândido Xavier) – Cap. 14 Em Serviço Espiritual, Analisando o Caso Libório.

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