A Comunicação Não-Violenta aplicada aos trabalhos espíritas

Daniel Salomão

O diálogo do Espiritismo com a Ciência é exercitado e defendido pelo próprio Codificador como essencial.[1] A Psicologia, em sua diversidade, possui muitas interseções com o Espiritismo, tanto em seus objetos de estudo, quanto em seus métodos clínicos, que encontram reflexo nas tarefas de Diálogo Fraterno e Enfermagem Espiritual. Logo, é importante que haja da parte dos espíritas um interesse em se aproximar desse campo do conhecimento, não de forma subordinada, mas aliada e crítica.

O psicólogo americano Marshall B. Rosenberg (1934-2015) consagrou-se mundialmente por seus trabalhos na área de relacionamentos pessoais e profissionais, particularmente com sua técnica de Comunicação Não-Violenta (CNV), descrita em obra homônima. Em resumo, sua proposta é de reformulação da “maneira de nos expressarmos e ouvirmos os outros”,[2] de forma consciente, atentos a sentimentos e necessidades. Como o próprio autor admite, “tudo que compõe a CNV já era conhecido havia séculos”, e, tanto na mensagem cristã, como em seu desenvolvimento no Espiritismo, vamos encontrar proximidade de conceitos. Nesse artigo, de forma introdutória, daremos destaque à aplicação da CNV nas tarefas de Diálogo Fraterno e Enfermagem Espiritual, pensando tanto em seus próprios processos, quanto nas recomendações que podemos dar aos encarnados e desencarnados.

Observar sem julgar

Algumas vezes, na tarefa de Diálogo Fraterno ou com Espíritos em uma reunião mediúnica, nossa primeira postura é a de julgamento. Seja pela forma de falar ou pelo tipo de história relatada, rápida e frequentemente enquadramos a pessoa em um modelo prévio.[3] Todavia, apenas uma análise cuidadosa nos aproxima do contexto do discurso, destacando suas particularidades e enfraquecendo nossos preconceitos.

No diálogo de Jesus com a mulher samaritana, por exemplo, o Mestre, seja por suas percepções psíquicas, seja pela sua observação, aponta fatos. Ao ouvir dela que não possuía marido, afirma: “falaste bem: ‘não tenho marido’, pois tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido; nisso falaste a verdade” (Jo 4:17-18). Contudo, não a julga, não diz “que absurda a sua postura!”, o que dá abertura a que a conversa continue sem ruptura por parte da interlocutora, que se sente à vontade até para fazer perguntas. Como aponta Rosenberg, se logo expressamos uma avaliação dos que procuram nossa ajuda, é mais provável que eles a escutem como crítica e, assim, resistam ao que dissermos”.[4]

O mais adequado é ouvir com atenção, reunir as informações trazidas pelo atendido para finalmente emitir uma avaliação. Para evitar entendimentos equivocados, interessante é parafrasear a informação trazida por ele, dizer com nossas palavras o que entendemos, o que também é demonstração de interesse pelo seu problema.[5] Ademais, como aponta Emmanuel, diferente de julgar é discernir: as reais causas e consequências íntimas de um ato não temos acesso pleno, mas a distinção entre bem e mal, erro e verdade, segundo a proposta ética cristã, é fundamental para que o indivíduo trace “diretrizes do seu melhor caminho para Deus”.[6] Nesse sentido, como aponta Kardec, sem a censura ao erro “jamais o mal seria reprimido na sociedade”.[7] Essa é também a compreensão de Rosenberg.[8]

Além disso, da mesma forma que o dialogador deve se utilizar desse método, pode também recomendá-lo ao encarnado ou desencarnado a que esteja atendendo, como primeiro passo para solução de um problema de relacionamento. Devemos separar o que observamos de nossas conclusões possivelmente equivocadas. Por exemplo, dizer à esposa “você tem chegado em casa às 22h todos os dias” é melhor que dizer “você não se importa mais com sua família”. No primeiro caso, temos uma observação, no segundo, uma avaliação precipitada.

Identificar sentimentos

Ao dialogarmos com alguém que busca ajuda, após a etapa de observação devemos motivá-lo a que tome consciência de seus sentimentos perante as situações que enfrenta e os expresse.[9] No exemplo que demos, podemos perguntar ao marido o que ele efetivamente sente quando sua esposa chega às 22h em casa. Cansaço pelo excesso de serviços domésticos, ciúmes? Se em um recém-desencarnado observamos medo, é do desamparo da família encarnada, de enfrentar a própria consciência ou de descobrir que “morreu”?

Rosenberg recomenda “darmos aos interlocutores ampla oportunidade de expressão antes de começar a propor soluções ou solicitar ajuda”, não agindo com pressa, mas entendendo que uma fala inicial pode ser a ponta de um iceberg de questões mais profundas.[10] Essa postura se enquadra na famosa “empatia”, enquanto “compreensão respeitosa daquilo por que os outros estão passando”.[11] Nesse caso, a ação do dialogador pode ser catalisadora de algo muito caro para nós espíritas, o autoconhecimento. O olhar para si mesmo, buscando identificar o que precisa “de reforma”,[12] é o mesmo olhar que identifica o que estamos sentindo ante os desafios da vida. Logo, favorecer a descrição dos sentimentos é o segundo passo da CNV, que abre caminho para a identificação das reais necessidades daquele que busca amparo. Se sei agora que os atrasos de minha esposa me causam ciúme, posso traçar uma estratégia de solução, auxiliado pelo dialogador. Da mesma forma, ao esclarecer um desencarnado, se sei que seu medo é de estar “morto”, elaboro com mais segurança uma linha argumentativa.

Expressar necessidades e fazer pedidos

Como aponta Rosenberg, “a CNV aumenta a consciência de que aquilo que os outros dizem e fazem pode ser o estímulo para os nossos sentimentos, mas nunca sua causa”.[13] Aquele que procura o centro espírita pode, ao identificar seus sentimentos, culpar os outros pelo seu sofrimento. Contudo, a responsabilidade pelos nossos pensamentos, sentimentos e atos é apenas nossa.[14] Também para Kardec, ainda que os diversos contextos possam gerar agravantes e atenuantes às nossas ações, “nunca há fatalidade nos atos da vida moral”.[15]

No exemplo conjugal que temos explorado, após constatar seu sentimento de ciúme, o marido pode ser convidado a entender que a causa está nele mesmo, independentemente das ações da esposa, ainda que equivocadas. Contudo, isso não é um convite à inércia ou à culpa imobilizante, pois deve agora tentar expressar suas necessidades, provavelmente de estar mais tempo com a ela: a importância do diálogo perante as desavenças já foi recomendada por Jesus (Mt 18:15; Lc 17:3). Da mesma forma, ao lidarmos com um desencarnado obsessor, após ajudá-lo a identificar um possível sentimento de abandono ou traição que o tortura, podemos auxiliá-lo a perceber que sua necessidade real não é a de atacar quem o desamparou.

Nesse processo, contudo, fundamental é ouvir o outro, como comentamos acima e como fazia Jesus: “que queres que eu te faça” (Lc 18:40). Afinal, “costuma ser frustrante para quem necessita de empatia ver-nos presumir que precise de encorajamento ou de um conselho ‘para consertar’ a situação”.[16]

Para Rosenberg, em vez de culparmos os outros ou nós mesmos, mais interessante é buscar identificar nossos sentimentos e conectá-los às nossas necessidades. No primeiro exemplo, se o marido consegue expressar isso à esposa com clareza e carinho, mais fácil será para ela reagir com compaixão.[17] No segundo, se o obsessor reconhece sua real necessidade de amparo, mais simples será para ele deixar sua ação equivocada e buscar auxílio junto a familiares desencarnados que o amam, por exemplo.

Em caso semelhante ao que propomos, conta Rosenberg que “uma mulher, frustrada porque o marido passava tempo demais no trabalho, contou como seu pedido se voltara contra ela: ‘pedi a que ele não passasse tanto tempo no trabalho. Três semanas depois, ele reagiu anunciando que se inscrevera num campeonato de golfe!’”.[18] Ela disse a ele o que não queria em vez de dizer o que realmente queria: mais presença em casa.

Identificados sentimentos e necessidades, é essencial expressar com clareza nossos pedidos, evitando frases vagas, abstratas ou ambíguas e formulando solicitações na forma de ações concretas.[19] Isso serve para o dialogador ou esclarecedor e o próprio atendido. Além disso, é importante que essa expressão não seja acompanhada de julgamentos e acusações, as quais apenas diminuirão as chances de sucesso.[20] Como pensava Jesus, brandura e persuasão devem ser nossos recursos em qualquer discussão.[21]

Concluindo, como apontamos no início, a CNV pode contribuir muito em nossos trabalhos no centro espírita, particularmente nos que destacamos nesse texto. Como mostrado, o método pode ser aplicado pelo dialogador na forma de lidar com o atendido, bem como pode ser recomendado a ele como postura a exercitar em seu cotidiano. Enfim, recomendamos o conhecimento da obra de Rosenberg, enquanto aliada da proposta espírita. O livro é rico em exemplos que facilmente podem ser adaptados à nossa realidade.


[1] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 1, i. 55.

[2] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5. ed., São Paulo: Ágora, 2021, p. 19.

[3] Idem, p. 46.

[4] Idem.

[5] Idem, p. 122.

[6] XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 26ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2006, q. 63.

[7] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 10, i. 13.

[8] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5. ed., São Paulo: Ágora, 2021, p. 35.

[9] Idem, p. 58.

[10] Idem, p. 129.

[11] Idem, p. 117.

[12] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 919.

[13] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5. ed., São Paulo: Ágora, 2021, p. 69.

[14] Idem, p. 37.

[15] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 872.

[16] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5. ed., São Paulo: Ágora, 2021, p. 118.

[17] Idem, p. 73.

[18] Idem, p. 92.

[19] Idem, p. 93.

[20] Idem, p. 105.

[21] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 841.

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