Juntos, mesmo sendo diferentes

Ricardo Baesso de Oliveira

A óbvia polarização político-ideológico-partidária que se instalou no país nos últimos anos contaminou os espaços espíritas, bem como diferentes espaços religiosos. Poucos grupos espíritas saíram ilesos desse aguerrido fenômeno sociológico.

Superada, em parte, a disputa política com o fim do pleito eleitoral, compete-nos avaliar os caminhos que precisamos seguir para retomar o trilho da convivência sadia. Mesmo sendo diferentes, estamos juntos no compromisso de tornar a Terra um mundo mais justo, igualitário e compassivo.

O ideal que nos une é infinitamente maior que as expectativas temporais, corporificadas em personalidades humanas, que, nas décadas futuras, se tornarão apenas um retrato na parede ou um parágrafo nos livros de História.

O compromisso assumido com os avalistas de nossa encarnação transcende as dificuldades relacionais, próprias da convivência humana.

Erasto, escrevendo aos espíritas de Lyon, coloca:

Não podeis acreditar quanto nos é doce e agradável presidir ao vosso banquete, onde o rico e o artífice se acotovelam brindando à fraternidade; onde o judeu, o católico e o protestante podem sentar-se à mesma comunhão pascal. Não podeis crer quanto me sinto orgulhoso de vos distribuir, a todos e a cada um, os elogios e o encorajamento que o Espírito de Verdade, nosso bem-amado mestre, me ordenou conferir às vossas piedosas cortes.i

Vale ressaltar que a proposta de comunhão apresentada por Erasto inclui até mesmo adeptos de diferentes tradições religiosas, obviamente, compartilhando a crença comum que os torna espíritas: a sobrevivência da alma e sua manifestação junto aos homens. Afinal, para Kardec, espírita é todo aquele que crê nas manifestações dos Espíritos.iiO Codificador considerava espíritas também os espiritualistas das tradições inglesa e norte-americana, que não aceitavam a doutrina das vidas sucessivas, por exemplo. Examinando essa questão, ele escreveu:

A gente é espírita desde o momento em que se entra nesta ordem de ideias, ainda mesmo quando não se admitissem todos os pontos da doutrina em sua integridade ou em todas as suas consequências.iii

Voltando os olhos para os primórdios do Cristianismo, vamos identificar uma comunidade fiel no compromisso de bem-servir e constituída de pessoas muito distintas.

Entre os escolhidos por Jesus, havia mulheres e homens. Entre as mulheres, uma senhora da aristocracia judaica (Joana de Cuza) e uma mulher simples do povo (Maria de Magdala). Entre os homens, havia muito jovens, como João, e mais velhos e casados, como Pedro e Felipe.

Havia um cético (Tomé) e um comerciante, vinculado a um partido revolucionário (Judas Iscariotes). Havia um publicano (Mateus) e um zelote (Simão), duas personalidades de convivência quase impossível. O publicano era o cobrador de impostos, mancomunado com o Império Romano, detestado por todos, particularmente pelos zelotas ou zelotes. Estes pertenciam a um movimento político judaico do século I que procurava incitar o povo da Judeia a rebelar-se contra o Império Romano e expulsar os romanos pela força das armas, o que conduziu à Primeira Guerra Judaico-Romana.

Impensável, antes de Jesus, que figuras tão díspares pudessem se movimentar juntas, em comunhão fraterna. E permaneceram juntas, embora Mateus continuasse sendo chamado de publicano e Simão, de zelota.

Examinando as dissidências entre os espíritas, Kardec afirma:

Que vos possais confundir todos numa mesma família e vos dar, do fundo do coração e sem pensamento premeditado, o nome de irmãos. Se, entre vós, houver dissidências, causas de antagonismo; se os grupos, que devem todos marchar para um objetivo comum, estiverem divididos, eu o lamento, sem me preocupar com as causas, sem examinar quem cometeu os primeiros erros e me coloco, sem vacilar, do lado daquele que tiver mais caridade, isto é, mais abnegação e verdadeira humildade, pois aquele a quem falta a caridade está sempre em erro, ainda que coberto de algum tipo de razão, porquanto Deus maldiz a quem diz a seu irmão: Raca. Os grupos são indivíduos coletivos que devem viver em paz, como os indivíduos, se realmente são espíritas; são os batalhões da grande falange. Ora, em que se tornaria uma falange cujos batalhões se dividissem?iv

Em uma das metáforas do reino de Deus, Jesus coloca que “o reino dos céus é como uma rede de pesca que foi lançada ao mar e pegou peixes de todos os tipos” (Mt 13:47). O texto se reporta a todos os peixes. Alguns sofisticados, como o salmão; outros simples, como a sardinha. Todos incluídos na mesma rede.

Segundo Jesus, Deus “faz que o sol se levante sobre maus e bons e que a chuva desça sobre justos e injustos” (Mt 5:45). Somos de todos os tipos e não precisamos deixar de ser o que somos, de acreditar naquilo que acreditamos, e nos afastarmos das lutas que consideramos justas. Nada disso é cobrado de nós.

Só uma coisa nossa consciência nos cobra: o empenho pessoal, no sentido de que a tarefa espírita se mantenha pujante, com a certeza de que estamos fazendo o que nos compete fazer.

Ainda Kardec:

Se, pois, eu tivesse de opinar em uma divergência, eu me preocuparia menos com a causa e mais com a consequência. A causa, sobretudo em querelas de palavras, pode ser o resultado de um primeiro movimento, de que nem sempre se é senhor; a conduta ulterior dos dois adversários é o resultado da reflexão: eles agem de sangue frio e é então que se forja o verdadeiro caráter normal de cada um. Uma cabeça ruim e um bom coração muitas vezes caminham juntos, mas rancor e bom coração são incompatíveis. Minha medida de apreciação seria, pois, a caridade, isto é, eu observaria aquele que falasse menos mal de seu adversário, que fosse mais moderado em suas recriminações.v

Fica óbvio no pensamento do Codificador que, mais importante que as condições que deram origem às dissenções, está a forma como vamos lidar com elas, no desdobramento dos fatos. Já não importa quem estava com a razão, mas, sim, quem se dispõe a compreender e a amar mais.

E, finalmente, Erasto no diz: “não falhareis. Tenho como garantia o bem que realizastes e o que vos resta fazer.”vi É consolador o pensamento desse Espírito. Faz com que recordemos todo o bem feito anteriormente, e coloca esse bem como avalista do bem que nos resta fazer. Fica como meditação para cada um de nós: se já fizemos tanto, consolando os aflitos, amparando os caídos e esclarecendo os desinformados, por que deixar de fazer agora?

i KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, v. 4. Catanduva: EDICEL, 2016, out/1861 “Epístola de Erasto aos espíritas lioneses”.

ii KARDEC, Allan. O Espiritismo em sua expressão mais simples. 2ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 1989 “Histórico do Espiritismo”.

iii KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, v. 11. Catanduva: EDICEL, 2016, jun/1868.

iv KARDEC, Allan. Viagem espírita em 1862. Rio de Janeiro: FEB, 2008, “Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux”, item III.

v Idem.

vi KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, v. 4. Catanduva: EDICEL, 2016, out/1861 “Epístola de Erasto aos espíritas lioneses”.

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