O massacre da noite de São Bartolomeu e a Lei de causa e efeito

José Fernando

Mas Jesus lhe ordenou: embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão. (Mt 26:52)

Corria célere, angustiada e aflita, certa jovem, no vigor de suas 15 primaveras, pelas ruas sombrias de sua encantadora Paris, tão cedo já congestionada por multidões em gritos e lamúrias asfixiantes. Naquela madrugada de 24 de agosto de 1572, em nobre residência, havia sido acordada por barulho ensurdecedor do tropel de cavalos da guarda do rei Carlos IX e, agora, presenciava cenas de desvario de um povo a matar aos gritos e a histéricas gargalhadas seus próprios irmãos.i Fumaça e fogo escaldante assomavam daqui e dali destruindo casas e carruagens. Horrendas exclamações “massacrez! massacrez! – o rei permite!” ecoavam-lhe aos ouvidos e, pressurosa, recordando-se que alguns corações amigos talvez já estivessem às portas da morte, acelerou ainda mais os passos.

Contornando as margens do sempre bucólico rio Sena, apavorava-se ao ver suas águas cristalinas, agora revoltas, tintas de sangue dos corpos lançados ao caudal da correnteza, trespassados que foram pelas lanças afiadas de guardas embriagados pelo álcool e pelo cheiro acre de sangue. Afinal, conseguiu aportar em suntuosa residência e, adentrando suas portas, a criadagem aflita a fez penetrar em um enorme salão em penumbra, conduzindo-a até distinta dama, esposa de um nobre francês e amiga íntima da rainha Catarina de Médici, a conhecida Duquesa de Nemours. A aristocrática matrona, previamente ciente dos acontecimentos nefastos e de suas consequências, tentou acalmar a transtornada jovem, oferecendo-lhe guarida em seu palácio, severamente defendido pelos soldados da rainha, sua amiga. Esta jovem, que conheceremos ao final, teve esta tenebrosa experiencia no triste episódio que ficou registrado na história como “O massacre da noite de São Bartolomeu”.

Historicamente, sabemos que este período do início da Idade Moderna ficou fortemente marcado na França pelas chamadas guerras religiosas.ii Reinava no país Carlos IX, conhecido por sua personalidade titubeante e por suas fragilidades físicas, dominado que era, energicamente, por sua mãe Catarina de Médici, que governou a França com rigidez, autoritarismo e à revelia de seu próprio filho, o rei.

À época, a Reforma Protestante, desencadeada por Lutero, havia se alastrado pela França, seguindo a vertente do Calvinismo, aperfeiçoada pelo teólogo, pastor e advogado francês João Calvino. A Igreja Católica apresentava-se assustada com a rápida expansão dos princípios reformadores e o consequente aumento do número de seus adeptos. A Ordem Eclesiástica, em conluio e união com a realeza, e temerosa pela ameaça da perda de poder, envidava esforços no sentido de exterminar do solo francês a denominada “peste e seus infernais praticantes”.

A bem da verdade, a ideia de eliminar todos os adeptos do Protestantismo naquele país germinou numa conspiração político-partidária mascarada de devoção religiosa, com pleno apoio da Igreja Católica e com o aval do Papa Gregório XIII, que atendeu, por interesse de preservar o milenar domínio da igreja, às instâncias políticas de Catarina de Médici. Por sua vez, a rainha, da linhagem dos Valois, também necessitava de apoio do poder espiritual no objetivo de preservar a hegemonia do poderio secular de sua família, a linhagem dos Valois-Angoulême.

A trama foi urdida em detalhes por um grupo de amigos seletos da rainha, acolitada pela Duquesa de Nemours, já inicialmente aludida. Ficou acertado o casamento da filha católica de Catarina, a jovem Margarida de Valois, posteriormente rainha Margot, com o rei de Navarra, Henrique IV, protestante. Seria uma cilada com o dissimulado objetivo de selar a paz entre protestantes, vulgarmente chamados pelos franceses de “huguenotes”, capitaneados pelo almirante da Guarda Real Gaspar de Coligny, e os católicos, vinculados à Santa Liga, liderados pelo Duque de Guise. Com a cidade repleta de protestantes que atenderiam ao convite da rainha-mãe para o enlace matrimonial, seria a oportunidade perfeita para o macabro intento. Finalizada a cerimônia, o casal se recolheu ao aposento real e, no adentrar da madrugada, o complô tomou forma, quando a aludida duquesa e seus compares insistiram com a rainha, ainda vacilante e receosa com o desenrolar trágico que poderia vir.

Investindo, mesmo diante da possibilidade da morte até mesmo de seus filhos, a devotada amiga da soberana, a Duquesa de Nemours, com entusiasmada inflexão de voz, impôs, com firmeza, ao grupo de conspiradores sua maligna intenção: “Dar nossos filhos a semelhante empresa é privilégio que devemos disputar!” Convencida, a rainha se dirigiu aos aposentos de seu filho e rei, Carlos IX. Visivelmente atormentada e ansiosa, instou para que ele assinasse o proclama que ordenava o massacre dos altos dignitários protestantes que se encontrassem em Paris naqueles dias. Carlos IX, irritado e descontrolado pela opressiva histeria da mãe, assinou o édito e, fora de si, exclamou: “Que matem todos, todos!”

Às três horas da madrugada, badalavam lúgubres os sinos da Catedral de Saint-Germain l’Auxerois, dando início à chacina que se transformaria em um dos maiores carmas coletivos da França. Grupos de cavaleiros e de guardas, ostentando a cruz branca nos chapéus e alvas faixas nos braços, emblema da Santa Liga, acordaram os atordoados protestantes em suas casas e pensões, dando início à matança que se alastrou por vários dias e depois se espalhou pelo resto do país. Diante de total desequilíbrio, em evidente histeria coletiva, a própria população católica de Paris juntou-se aos guardas na loucura insana e, por três dias, sob o badalar assustador dos sinos e das missas que se alternavam nas igrejas, os sacerdotes e fiéis estimularam a matança com cânticos agônicos e gritos de satisfação pela morte dos “infiéis”.

Este dantesco morticínio não poderia deixar de trazer consequências gravíssimas para a Humanidade e, em especial, para o povo francês. A França, pelos séculos seguintes, viu-se em guerras frequentes com outros povos; sedições e motins se alternavam em períodos curtos de paz, culminando com o descalabro da Revolução Francesa em 1789. Muitos daqueles Espíritos criminosos de 1572, reencarnados em 1789, foram também trucidados pelas hordas enfurecidas do povaréu que destruía, tijolo por tijolo, a prisão política da Bastilha, e perseguia, enlouquecidamente, a realeza e todos os que viviam à sua sombra. Outros, em terrível carma reencarnatório, morriam decapitados pela implacável guilhotina, que ceifou milhares de vidas, tanto de nobres quanto de revolucionários girondinos e jacobinos nos períodos catalogados pela história como “Terror” e “Grande Terror”, que se sucederam à queda da Bastilha.

Os ecos da hediondez da Noite de São Bartolomeu prosseguiram no plano espiritual da cidade de Paris por muitos séculos. Allan Kardec publicou um artigo na Revista Espírita de setembro de 1858, de autoria por ele confiável, em que se depreende curioso e estranho fenômeno, misto de sinestesia e telestesia, na época presenciado e sentido por toda uma coletividade.iii Exatamente oito dias após o massacre, sinistra revoada de corvos empoleirou-se e crocitou sobre o pavilhão do Louvre, presenciada pela supersticiosa e arredia população parisiense, pressagiando angustiosas sensações. Naquela mesma noite, duas horas após haver se deitado, Carlos IX saltou de sua cama assustado e confuso, bradando em desespero, acordando a todos no castelo. Temeroso, ouvira no ar um ensurdecedor barulho de vozes a gritar e gemer, em tudo semelhante ao que percebera na noite do massacre. Como todos esses gritos eram tão impressionantes, tão marcantes e de tal forma articulados, Carlos IX, julgando que os inimigos da realeza e de seus partidários os haviam surpreendido e os atacavam, enviou um destacamento de guardas para impedir o novo massacre. A soldadesca retornou ao palácio e informou ao rei que Paris estava ordeira e que, de fato, o inusitado barulho que se ouvira estranhamente ainda permanecia no ar.

Em outro fato, narrado em obra magistral intitulada Nas voragens do pecado, Yvonne do Amaral Pereira, com sua mediunidade ímpar, relatou em riqueza de detalhes o desbordar da trágica noite de São Bartolomeu, tendo foco em doloroso acontecimento refletido numa trama de duas mulheres que se vingam e, posteriormente, impõem um processo obsessivo contra o “capitão da fé” Louis de Narbonne, responsável que fora pelo odioso massacre de seus familiares naquele fatídico evento.iv

Recapitulando a narrativa inicial, surpreende-nos a identidade da jovem aristocrata que, açodada e atônita, permeava entre a multidão confusa e enlouquecida naquela soturna madrugada.Prefaciando o livro Dicionário da alma, de 1964, o saudoso professor Ismael Gomes Braga se referiu a mui digna senhora, militante do Movimento Espírita do Rio de Janeiro, Esmeralda Campos Bittencourt.v Ismael reverenciou as genuínas qualidades morais desta criatura, que também participava do círculo íntimo de amizade do querido médium Francisco Cândido Xavier, e afirmou ser ela “um coração de mãe, santificado pela dor, que assistiu à desencarnação violenta de filhos e filhas em plena juventude, brilhantes de conhecimentos científicos e de virtudes morais”.

Referiu-se à Sra. Esmeralda e a seus filhos como a reencarnação de um grupo de Espíritos ligados à corte de Carlos IX, comprometidos com os descalabros da Noite de São Bartolomeu. Fundamentou semelhante assertiva em mensagem reveladora de reconforto, ditada por Emmanuel a Chico em 9 de maio de 1953, em reunião no Centro Espírita Luiz Gonzaga, e dirigida à referida senhora, quando da desencarnação de um de seus filhos. Na mensagem, Emmanuel consolava a antiga Duquesa de Nemours, amiga íntima de Catarina de Médici, agora na personalidade da sofrida mãe dona Esmeralda Campos Bittencourt, que vai se despedindo, pouco a pouco, de seus filhos e filhas, vitimados por acidentes inusitados e fatais.vi Quando duquesa, julgava ser um privilégio das mães deixar seus filhos empreenderem um morticínio de inocentes. Agora, como simples dona de casa e mãe extremosa, Esmeralda Campos Bittencourt, dando cumprimento ao determinismo divino da responsabilidade pessoal de seus atos, entregava, fragilizada e impotente, de alma estraçalhada, seus únicos tesouros à força implacável dos fios do destino que ela e eles, no longínquo agosto de 1572, teceram displicentemente, com seus atos abomináveis.

Concluindo nossas reflexões sobre as consequências espirituais de tão fatídico acontecimento, reportamo-nos ainda a uma carta, carregada de emoção, escrita por Chico Xavier à senhora Izabel Bittencourt de Souza, residente no Rio de Janeiro, filha de D. Esmeralda Bittencourt (a desventurada duquesa). Nessa missiva, remetida da Rue Bonaparte, 49, em Paris, em 1965, Chico, em uma de suas poucas viagens ao exterior, descreveu, deslumbrado, suas experiências na Cidade Luz. Dentre outras confidências, narrou que, na aludida mensagem de Emmanuel de 1953 destinada a D. Esmeralda, mãe de Izabel, esta lhe pediu que perguntasse ao Espírito Agar, que fora uma de suas filhas, e estava ali presente, quando terminaria o ciclo de expiações que acorrentava a todos de seu clã. Agar respondeu-lhe que os grilhões iriam se rebentar quando ele, Chico, e D. Esmeralda estivessem juntos em um dia 24 de agosto, na cidade de Paris. Naquela época, sorriram ambos da afirmação do Espírito e, jocosamente, brincaram que aconteceria somente no plano espiritual, já que ele, Chico, jamais imaginara conhecer tal cidade. E, para a sua surpresa, no dia 24 de agosto de 1965 (12 anos depois da mensagem), ele viu Dona Esmeralda, já desencarnada, e outros Espíritos na visita que fizera aos salões do Museu do Louvre. Ela, feliz e com furtivas lágrimas a embaçar-lhe os olhos, agradeceu a oportunidade bendita da redenção de sua desafortunada alma.

Finalmente, Chico escreveu que, ainda naquela mensagem datada de 1953, o Espírito Agar, respondendo a uma pergunta dele próprio, evidenciou a sua participação na fatídica noite de São Bartolomeu dizendo: “Sim, de algum modo, embora indiretamente…”vii As reticências foram devidamente esclarecidas naquela ocasião. Emmanuel, percebendo o grande pesar que essas mortes de pessoas amigas causavam a Chico, perguntou se ele queria saber o motivo de tanto luto. Chico aquiesceu e, imediatamente, sentiu-se transportado àquela tenebrosa noite de São Bartolomeu. Viu-se, em mais uma de suas várias encarnações em corpos femininos, na personalidade daquela jovem católica e amiga de muitos huguenotes, que corria célere e desesperada pelas ruas de uma Paris nada romântica daqueles tempos conturbados.

Todos os responsáveis diretos por essa inominável afronta aos códigos divinos de amor ao próximo encontraram na erraticidade sofrimentos acerbos e, no decorrer dos séculos, a sacrossanta oportunidade das provações e expiações nas ardilosas tramas de dores e enganos do dia a dia secular de suas seguidas reencarnações.

Assim, a Duquesa de Nemours, renascida como dona Esmeralda, alcançou sua redenção “dura lex sed lex”. Nada obstante, a misericórdia divina encontra sempre uma forma de atenuar a rigidez da lei. Relembrando o poeta Valado Rosas em suas inspiradas rimas do poema Na paz do além, ditado ao inesquecível médium Chico Xavier,somos conduzidos plenos de esperança na busca de alento, na certeza de que vertem dos Céus oportunidades redentoras para que se faça na Terra a justiça perfeita do Criador. Valado Rosas assim se expressa:

(…) Subi o gólgota dos meus pesares,
Que os avatares da redenção
São todos feitos nas amarguras,
Nas desventuras da provação.
Perdi na Terra doces afetos,
Sonhos diletos de sofredor,
Mas recebendo na grande escola
A grande esmola do meu Senhor.
E a morte trouxe-me a liberdade,
A piedade, o amparo e a luz!
Feliz quem pode na dor terrestre
Seguir o Mestre com sua cruz.
viii

i BOECHAT, Newton. O Espinho da insatisfação. Rio de Janeiro: FEB, 1976, p. 56.

ii DUMAS, Alexandre. A rainha Margot. E-book, 2019, c. 7.

iii KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, v. 1. Catanduva: EDICEL, 2016, set/1858, “Os gritos da Noite de São Bartolomeu”.

iv PEREIRA, Yvonne A. Nas voragens do pecado. Pelo Espírito Charles. 12ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2017.

v GRUPO ESPÍRITA FABIANO DE CRISTO. Dicionário da alma. Rio de Janeiro: Meier, 1964, prefácio de Ismael G. Braga.

vi MILLECO, Antônio. Ecos de São Bartolomeu. São Paulo: Lachâtre, 1986.

vii BRAGA, Carlos Alberto; ROCHA, Arnaldo. Chico, diálogos e recordações. Matão: O Clarim, 1998, p. 179.

viii XAVIER, Francisco C. Parnaso de além-túmulo. Por Espíritos diversos. Rio de Janeiro: FEB, p. 388.

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *