Kardec entre amigos e inimigos – 2ª parte

Fábio Fortes

No acervo das cartas de Kardec, temos uma amostra de ataques que a recém-instituída Doutrina recebia de personalidades daquela época. Em carta[1] direcionada ao senhor Evariste Edoux, editor do jornal espírita La vérité, Kardec enaltecia o tom moderado com que o editor havia rebatido as acusações que um certo Padre Barricand lhe fizera em seu curso de Teologia. Kardec afirmava ao seu confrade: “Agradecendo-lhe muito sinceramente o que nele o senhor disse a meu respeito, felicito-o pela moderação que imprimiu à sua polêmica, e não poderia insistir demais em pedir-lhe para perseverar nesse caminho.” Esta carta, escrita em abril de 1864, recebeu desdobramentos em duas ocasiões na Revista Espírita: logo no mês seguinte, em maio de 1864, onde lemos uma síntese da querela, e em agosto de 1864, onde vemos uma tréplica do senhor Edoux à réplica do Pe. Barricand.

Compreendamos o contexto. Em um de seus famosos cursos, o Padre Barricand, que era professor da Faculdade de Teologia de Lyon, propusera uma Introdução ao Espiritismo e ao Magnetismo. Embora a proposta fosse estudar a nova doutrina, o resultado tinha sido um ataque pessoal a Kardec, que era, então, acusado de agir desonestamente, de inflar e mentir sobre o número de adeptos da Doutrina Espírita e sobre o sucesso das expedições realizadas em 1862 e 1863. O senhor Edoux, que estivera presente naquele curso, diante dessas acusações, vira-se na posição de publicar uma réplica no jornal que dirigia, réplica esta que Kardec comentou na carta de 1864 citada.

Em primeiro lugar, Kardec elogia a moderação da réplica, dando-nos a entender que, se por um lado, podemos e talvez devamos responder àqueles que propagam mentiras e calúnias, é necessário que o façamos não na linguagem da contenda, mas na do esclarecimento, pois, desse modo, como afirma Kardec, “mais se contraria os nossos adversários, pois eles gostariam de nos verem sair dos nossos limites, e fazem tudo o que podem para nos arrastar ao terreno deles. Cabe a nós não nos deixarmos cair na armadilha.”

Sim, Kardec nos orienta a evitar a armadilha da troca de farpas e a responder “em outro terreno”. Contudo, responder de outro modo – que seria o “modo espírita” – não significa adotar o silêncio conivente ou furtar-se do dever de mostrar a verdade. Caridade não é admitir o inaceitável, omitindo-se quando se é convocado ao testemunho da verdade. Isso é ser pusilânime. Ao seu amigo, Kardec pontua: “é, sobretudo, um dever mostrar os erros voluntários ou involuntários que ele possa ter cometido, tudo dentro do limite das conveniências, mesmo quando ele delas se afaste” (grifos nossos). Mostrar os erros, não para advogar uma pretensa superioridade, mas para fomentar o diálogo. Esta é a posição de Kardec, sobretudo, jamais responder com agressão.

O dado curioso é que, no desfecho desta carta, Kardec nos oferece uma informação aparentemente sem importância, mas que pode ser a chave para a compreensão dos novos ataques que a Doutrina dos Espíritos vinha recebendo naquele ano de 1864. Diz Kardec: “Remeti a Lyon, pelo correio de ontem, um certo número de exemplares de nossa obra mais recente: A Imitação do Evangelho.”Sabemos que a Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo é o nome que recebera, em sua primeira edição, O Evangelho segundo o Espiritismo. O Espiritismo, certamente, com essa obra, ingressava em uma nova fase, trazendo à baila novos elementos, pontuando a relação entre a Doutrina Espírita e a religião. Um ataque vindo de um professor de Teologia certamente não parece ser simplesmente fruto de uma mera casualidade.

É pouco provável que o padre em questão tenha efetivamente conhecido O Evangelho segundo o Espiritismo; menos improvável é que ele tenha ouvido rumores de sua publicação; mais verossímil, contudo, é que o sucesso do Espiritismo, no âmbito daquela sociedade, já estivesse incomodando há tempos os círculos intelectuais da Igreja. Interessante é como Kardec conclui sua missiva: “Penso que o senhor encontrará nela – na Imitação do Evangelho – elementos para refutar o senhor Barricand.”Essa obra representaria, portanto, o meio mais eficaz de combater as agressões. É como se Kardec, enfim, nos dissesse: contra todas essas agressões e ataques, respondamos com o Evangelho!

Em outra carta[2] presente no acervo do Projeto Allan Kardec, datada de 19 de abril de 1864, vemos um belo testemunho dessa nova dimensão do Espiritismo, inaugurada pela publicação de O Evangelho segundo o Espiritismo. Trata-se do comentário da senhora Foulon para Amélie Boudet, em que oferece suas primeiras impressões de leitura: “como lhe estou reconhecida por haver, em meio a tantas ocupações, se lembrado de me enviar essa preciosa obra que eu esperava com tanta ansiedade! Na vida de provações que Deus houve por bem me oferecer, esse é o maná espiritual de onde retirarei a força e a coragem nos momentos de fraqueza.” Continuando, a senhora Foulon assevera:

O Espiritismo vai certamente ter um novo impulso com essa obra. O que lhe posso dizer é que as reflexões do seu caro Hypolite (como a senhora o chama) são lidas com o mesmo interesse que as instruções que as seguem. Ele comunica à alma sofredora aquela calma, aquela serenidade que o caracterizam. É bem isso que eu esperava dele; tal é a doçura do ensinamento que se justifica pelo título. A senhora deve ter muito orgulho dele!

A lição mais importante talvez seja esta: se, por um lado, as luzes da nova doutrina provocavam ataques irônicos e insinuações do Padre Barricand, também propiciavam, por outro, o gesto afável de gratidão da senhora Foulon. É um belo exemplo para mostrar que a vida é um pouco assim: não vale a pena insistir nas polêmicas, devendo-se apenas esclarecê-las e seguir em frente.

No Movimento Espírita, não raro, temos notícias de querelas entre seus participantes. Defesas acaloradas de pontos de vista infelizmente resvalam, algumas vezes, em ataques e acusações, o que contribui para fragilizar o próprio Movimento, contradizendo as divisas da fraternidade e da caridade que lhe são inerentes. Nessas horas, voltemo-nos a O Evangelho segundo o Espiritismo. Nele encontraremos as respostas e os caminhos de como devemos agir e de como devemos replicar.


[1] KARDEC, Allan. [Rascunho de carta para o senhor Edoux – 15/04/1864]. Disponível em: http://omeka-wp.projetokardec.ufjf.br/items/show/75. Acesso em: 14 Fev 2021. Projeto Allan Kardec.

[2] KARDEC, Allan. [Cópia de carta da senhora Foulon para a senhora Amélie Boudet – 19/04/1864]. Disponível em: http://omeka-wp.projetokardec.ufjf.br/items/show/76. Acesso em: 14 Fev 2021. Projeto Allan Kardec.

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