Ser bom é diferente de ser bonzinho

Ana Paula Bartholomeu

Quando a nossa atenção é despertada pela entrada, no plano da consciência, de valores e ideias elevadas, o comportamento pessoal necessariamente é chamado a vivenciar, no dia a dia, as lições que eles nos trazem. Se nos despertamos para os ensinamentos espíritas, por exemplo, é fundamental que façamos uma análise de nós mesmos, a fim de avaliarmos em que medida estamos praticando ações que nos ajudam a desenvolver as virtudes de que tanto tomamos conhecimento, ensinadas sobretudo pelo Mestre Jesus. É vital que nos dediquemos a conhecer os motivos das nossas ações, a observar as respostas que damos aos desafios diários, a reconhecer a direção que tomamos nos dias, a ver os rastros que deixamos na vida, para, enfim, verificar se estamos nos mantendo na trilha almejada da evolução moral, no rumo da perfeição, ou nos desviando distraidamente, caindo nos inúmeros e largos atalhos que descem para outras direções. Em outras palavras, cumpre-nos saber: estamos desenvolvendo mesmo as virtudes, como desejamos, ou estamos pintando nossas ações rotineiras com algum verniz?

Tomemos, neste exercício de avaliação, a virtude da bondade. Se somos cristãos, certamente temos em conta que o ingresso no caminho de desenvolvê-la nos permitirá um passo muito proveitoso nesta experiência terrena. Contudo, quantas vezes confundimos o “ser bom” com o “ser bonzinho” ou “boazinha”, tomando as atitudes do bonzinho como se fossem de fato altruístas? Será que realmente estamos trabalhando na construção da virtude da bondade, isto é, nos exercitando de fato no campo da moral?

Disseram os Espíritos, quando da Codificação da Doutrina Espírita, que “a moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus” (O Livro dos Espíritos, questão 629). Será que, em nossas ações, estamos atentos para distinguir a bondade da submissão, da manipulação, do interesse pessoal?

Quando se põe na estrada do exercício do bem, a pessoa acata sem dificuldades maiores o serviço, ouvindo incessantemente a voz da consciência; não age pensando em obter recompensas com suas ações; movimenta as forças de sua alma, e passa a vencer crescentemente as inclinações que, de outro modo, a situariam no plano dos interesses pessoais, das expectativas de ganhos, de retornos de variadas espécies. Ela segue firme, vivendo um dia de cada vez, procurando agir melhor em cada oportunidade.

Bem diferentes são as atitudes da pessoa que busca ser “boazinha”. Invariavelmente, ela se esforça muito para ajudar, dedicando-se demais aos outros, apresentando-se muito solícita e, por esse viés, se assemelha à pessoa que está no exercício da virtude da bondade propriamente dita. Contudo, o bonzinho frequentemente tropeça em uma dificuldade que não se oculta aos olhos observadores: ele não se desvencilha das expectativas que carrega e, consciente ou inconscientemente, mantém aceso o desejo do retorno, computando sempre os resultados de suas ações.

As atitudes da pessoa que realmente se prontifica a aprender a fazer o bem revelam que sua base está em princípios morais profundos e nobres e, por isso, ela não cede a conveniências e a interesses de superfície. Suas ações primam pela coerência, porque, com a meta clara à sua frente, naturalmente os passos buscam apenas essa direção. Não se constrange quando reflexiona e precisa dizer “não”, podendo fazê-lo com amor e firmeza, sem medo de desagradar, sem medo de perder afetos. Ela não coage, mas ajuda sem reivindicar para si o mesmo grau de atenção que aprende a dispensar aos outros. Oferece o que traz de melhor no coração e nos pensamentos, demonstra afeto e compaixão, “ajuda, perdoa e passa”, como bem poetizou Casimiro Cunha, sem aguardar correspondência e sem ceder aos caprichos da personalidade.

Se desejamos ser reconhecidos como bonzinho, como boazinha, seguramente nossas atitudes apenas parecerão amorosas, quando na realidade não se pautam naqueles princípios morais que fundam as raízes das virtudes humanas. Antes, nossas atitudes ajustam-se ou se prestam a saciar necessidades íntimas ainda não trabalhadas e que carecem de urgente reconhecimento de nossa parte, para que possamos buscar as medidas necessárias de suplantação. Se identificamos em nós a intenção de agradar a todos, perguntemos à alma por que razão ela ainda se alimenta desse reconhecimento exterior. Se nos sentimos desencantados, magoados com o que chamamos ingratidão, reconheçamos nossa fragilidade emocional. Se ainda guardamos em nós velada necessidade de controlar e segurar ao nosso lado alguma “fonte de suprimentos” (seja uma amizade, um amor, uma situação…), não entramos no exercício da bondade. Se não estamos trabalhando a virtude, cedo ou tarde, apresentaremos ao outro o pesado e triste preço dos nossos cuidados: “eu fiz tudo por você”, ou “dediquei a você a minha vida, e você agora quer me deixar?”

Se exigimos do outro, a quem dizemos amar, alguma contrapartida, estamos no atalho que nos puxa para baixo. Desviamo-nos do caminho retilíneo. Relações de afeto são experiências humanas complexas, comportam altos e baixos e mil lições até serem sublimadas. Reduzir seu significado a moeda de troca é tratá-las como em geral tratamos dos investimentos em mercados de capitais. O interesse pessoal é marca das imperfeições humanas e nada tem com as virtudes, como lemos na questão 895 de O Livro dos Espíritos:

(…) Frequentemente, as qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir qualidades reais, que levem o mundo a considerá-lo homem de bem. Mas, essas qualidades, conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto.

Se em vez de gratidão pelas amizades ou amores que passaram sentimos no coração a “frustração do investidor” (como quem perde recursos numa movimentação financeira), cuidemos de relembrar a sabedoria das divinas leis, para colocarmos em movimento as forças da alma que jazem latentes no fundo de nós, a fim de crescermos a partir do entendimento e da superação das nossas fragilidades. Só com muita atenção e humildade trabalharemos, com honestidade, o nosso sentimento, que um dia será pleno e puro. Desde já, aprendamos a não ocultar, jamais, no coração, sufocando as sementes da real bondade que um dia florescerá, algum espinho que, no plano moral, lembre a infelicidade das aparências que matam o tempo e nada têm com a floração das imperiosas virtudes.

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