Homens e Mulheres: a questão do gênero

Daniel Salomão Silva

Em O Livro dos Espíritos afirma-se que os Espíritos não têm sexos, pois que estes dependem do organismo, ou seja, da constituição física. Logo, são os mesmos os Espíritos que ocupam os corpos de homens e mulheres, programando suas etapas reencarnatórias em acordo com as “provações, deveres especiais e novas oportunidades de adquirirem experiência”[1]. Todavia, mesmo na erraticidade, caracteres masculinos ou femininos podem ser observados:

O Espírito encarnado, sofrendo a influência do organismo, seu caráter se modifica segundo as circunstâncias e se dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõem esse mesmo organismo. Essa influência não se apaga imediatamente depois da destruição do envoltório material, do mesmo modo que não se perdem instantaneamente os gostos e os hábitos terrestres; depois, pode ocorrer que o Espírito percorra uma série de existências num mesmo sexo, o que faz que, durante muito tempo, ele possa conservar, no estado de Espírito, o caráter de homem ou de mulher do qual a marca permaneceu nele[2].

Em algumas reencarnações, o próprio Espírito tem autonomia de escolha e planejamento, quando possui maturidade para tal, em geral auxiliado por outros desencarnados; em outras, há certa compulsoriedade, quando o indivíduo não se encontra em condições intelectuais ou morais de planejá-la[3]. Logo, estar em corpos masculinos ou femininos pode ser escolha direta do Espírito ou não, dependendo das necessidades expiatórias ou provacionais que demanda em seu processo evolutivo. Para Léon Denis, “quanto à escolha do sexo, é também a alma que, de antemão, resolve. Pode até variá-lo de uma encarnação para outra por um ato da sua vontade criadora, modificando as condições orgânicas do perispírito”[4].

Além disso, a igualdade de direitos entre homens e mulheres é defendida explicitamente na obra base do Espiritismo bem antes dos movimentos mais recentes, pois “Deus deu a ambos o conhecimento do bem e do mal e a faculdade de progredir”[5]. Todo aspecto que indique certa inferioridade da mulher decorre “do domínio injusto e cruel que o homem assumiu sobre ela”, é o resultado de instituições sociais imperfeitas e do “abuso da força sobre a fraqueza”[6], logo deriva de componentes culturais e biológicos. Assim,

A lei humana, para ser justa, deve consagrar a igualdade de direitos do homem e da mulher. Qualquer privilégio concedido a um e a outro é contrário à justiça. A emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização; sua escravização marcha com a barbárie. Além disso, os sexos só existem na organização física. Já que os Espíritos podem encarnar num e noutro, sob esse aspecto não há nenhuma diferença entre eles, devendo, por conseguinte, gozar dos mesmos direitos[7].

Todavia, pelo que já foi exposto, fica claro que há diferenças entre as experiências feminina e masculina, também afirmadas por Léon Denis[8], o que pode soar paradoxal. Para Kardec,

Como devem progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social, lhes oferece provações, deveres especiais e novas oportunidades de adquirem experiência. Aquele que fosse sempre homem só saberia o que sabem os homens[9].

Desta forma, dizer que as oportunidades de adquirir experiências são diferentes poderia implicar em direitos desiguais? Entendemos que não.

Uma das diferenças apontadas entre homens e mulheres é a força física, no sentido muscular, o que indica que cada um deles teria funções especiais: “ao homem, por ser o mais forte, os trabalhos rudes; à mulher os trabalhos leves; a ambos o dever de se ajudarem mutuamente”[10]. Além disso, se Deus “deu à mulher menor força física, deu-lhe ao mesmo tempo maior sensibilidade apropriada à delicadeza das funções maternais e à fragilidade dos seres confiados aos seus cuidados”[11]. Mais à frente, a obra ainda afirma que devem ser assegurados direitos iguais, mas não funções: “é preciso que cada um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com a sua aptidão”[12]. Concordando com esta posição, segundo o Espírito Vianna de Carvalho,

Ao homem competem deveres próprios do seu caráter masculino, do seu vigor e tipo de trabalho, enquanto que, à mulher, são propostos labores domésticos compatíveis com a sua estrutura feminina, dócil, maternal, sem qualquer sobrecarga para a sua economia emocional, não se lhe negando o direito à participação no mercado de trabalho [grifos nossos][13].

Além disso, os homens não estão excluídos do processo de criação e educação familiar, pois “terão deveres idênticos na construção da família e orientação dos filhos”[14].

Explicando melhor as diferenças entre homens e mulheres, ressaltando a questão biológica,

Mas da igualdade dos direitos seria abusivo concluir pela igualdade de atribuições. Deus dotou cada ser de um organismo apropriado ao papel que ele deve desempenhar na Natureza. O da mulher é traçado por sua organização, e isto não é o menos importante. Há, pois, atribuições bem caracterizadas, atribuídas a cada sexo pela própria Natureza, e essas atribuições implicam deveres especiais que os sexos não poderiam cumprir eficazmente saindo de seu papel. Há atribuições em cada sexo, como de um sexo em relação ao outro: a constituição física determina as aptidões especiais; seja qual for sua constituição, todos os homens certamente têm os mesmos direitos, mas é evidente, por exemplo, que aquele que não está organizado para o canto não poderia ser um cantor. Ninguém pode tirar-lhe o direito de cantar, mas tal direito não lhe pode dar qualidades que lhe faltam. Se, pois, a Natureza deu à mulher músculos mais fracos do que ao homem, é que ela não foi chamada aos mesmos exercícios; se sua voz tem um outro timbre, é que não está destinada a produzir as mesmas impressões [grifos nossos][15]

Logo, entendemos que o único modo de conciliar estas visões aparentemente contraditórias é admitir que, apesar de apresentarem, em geral, tendências diferentes, sejam decorrentes de questões espirituais, biológicas ou culturais, homens e mulheres têm direitos de exercer as funções que bem entenderem. Admitir incongruências entre as experiências masculinas e femininas não implica necessariamente impedir que mulheres, por exemplo, ocupem profissões tradicionalmente masculinas e vice-versa. Ambos têm papeis complementares na sociedade, mas a liberdade de aceitá-los ou não deve ser assegurada.

Por exemplo, é reconhecida na mulher a função maternal, de maior importância que as funções masculinas, pois é a que dá as primeiras noções de vida ao recém-reencarnado[16]. Para Léon Denis,

O papel da mulher é imenso na vida dos povos. Irmã, esposa ou mãe, é a grande consoladora e a carinhosa conselheira. Pelo filho é seu o porvir e prepara o homem futuro. Por isso, as sociedades que a deprimem, deprimem-se a si mesmas. A mulher respeitada, honrada, de entendimento esclarecido, é que faz a família forte e a sociedade grande, moral, unida![17]

Segundo o Espírito Joanna de Ângelis, “a biologia não é fatalidade na definição da capacidade mental e cultural, quebrando as primeiras cadeias da intolerância”, todavia “a mulher é essencialmente mãe, em face da sua constituição biológica e psicológica, forte e frágil na estrutura emocional, vigorosa e meiga por imposição evolutiva, não se devendo furtar ao ministério da procriação”[18]. Entretanto, outros textos e dados podem sinalizar a não obrigatoriedade à maternidade: cabe lembrar que a própria esposa de Allan Kardec não teve filhos, por motivos desconhecidos. Aliás, segundo O Livro dos Espíritos, causar obstáculos à reprodução é um problema quando a finalidade é a “satisfação da sensualidade”[19], ou seja, por motivos egoístas, enquanto até mesmo o celibato é admitido como meritório quando “feito para o bem”[20]. Logo, dizer que a mulher é “essencialmente mãe” não implica em inferioridade ou “desvio” daquelas que não o são ou não querem ser.

Outras posições podem ainda ser encontradas, como a do Espírito Emmanuel, que afirma que, “se existe um feminismo legítimo, esse deve ser o da reeducação da mulher para o lar, nunca para uma ação contraproducente fora dele”[21]. Todavia, ao Movimento Espírita é proposta uma visão crítica de tudo “quanto vem dos Espíritos”, o que inclui todas as comunicações mediúnicas citadas neste texto. Allan Kardec propõe um método de controle, pelo qual tudo deve ser submetido à razão e a uma verificação de concordância. Apenas muitas mensagens recebidas por médiuns e Espíritos diferentes, e em locais diferentes, podem dar segurança à informação. Logo, mensagens como estas últimas refletem ainda apenas a posição individual de um Espírito, que não pode ser admitida como verdade incontestável[22]. Além disso, mesmo o material organizado por Kardec, para o qual se admite a aplicação de seu método, pode ser questionado, segundo o próprio Codificador:

Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará[23].

O que é importante salientar, entretanto, é que não afirmamos que as posições de Emmanuel e Joanna de Ângelis estão equivocadas, mas apenas que refletem entendimentos ainda particulares. Nada impede que o tempo, e outras mensagens neste sentido, revelem-nos serem estas recomendações as mais adequadas. Tanto as “certezas” antigas quanto as variadas posições atuais podem ser questionadas. Todavia, dizer que a ação da mulher fora do lar é “contraproducente” contradiz a posição de Kardec sobre sua participação no mercado de trabalho e sua oportunidade de instrução:

Por que a mulher não seria médica? Ela não é chamada naturalmente a dar cuidados aos doentes, e não os daria com mais inteligência se tivesse os conhecimentos necessários? Não há casos em que, quando se trata de pessoas de seu sexo, seria preferível uma médica? Inúmeras mulheres não têm dado provas de sua aptidão para certas ciências; da finura de seu tino em certos negócios? Por que, então, os homens reservariam para si o monopólio, senão por medo de vê-las ganhar superioridade? Sem falar das profissões especiais, a primeira profissão da mulher não é a de mãe de família? Ora, a mãe instruída é mais adequada para dirigir a instrução e a educação de seus filhos. Ao mesmo tempo em que alimenta o corpo, ela pode desenvolver o coração e o Espírito. Sendo a primeira infância necessariamente confiada aos cuidados da mulher, se ela for instruída, a regeneração social terá dado um passo imenso, e é isto que será feito[24]

Por fim, para o Espiritismo, é nesse longo processo evolutivo, vivendo ora como homem, ora como mulher, que o Espírito amadurece:

Na Esfera da Crosta, distinguem-se homens e mulheres segundo sinais orgânicos, específicos. Entre nós, prepondera ainda o jogo das recordações da existência terrena, em trânsito, como nos achamos, para as regiões mais altas; nestas sabemos, porém, que feminilidade e masculinidade constituem característicos das almas acentuadamente passivas ou francamente ativas. Compreendemos, destarte, que na variação de nossas experiências adquirimos, gradativamente, qualidades divinas, como sejam a energia e a ternura, a fortaleza e a humildade, o poder e a delicadeza, a inteligência e o sentimento, a iniciativa e a intuição, a sabedoria e o amor, até lograrmos o supremo equilíbrio em Deus[25].

Mesmo conservando características masculinas e femininas até nas “regiões mais altas”, em algum momento, já sem a necessidade destas diferenciações, o Espírito encontrará equilíbrio pleno entre estas “polaridades”. Para Kardec,

Não é senão o que ocorre a um certo grau de adiantamento e de desmaterialização, que a influência da matéria se apaga completamente, e com ela o caráter dos sexos. Aqueles que se apresentam a nós como homens ou como mulheres, é para lembrar a existência na qual nós os conhecemos[26].

Concluindo, em primeiro lugar, entendemos que ainda não há um consenso teórico no Movimento Espírita sobre a melhor forma de se interpretar as diferenças entre homens e mulheres, reconhecidas nos textos citados. Nossa sociedade atual tem observado homens cuidando do “interior” e mulheres do “exterior”, sem ainda ter dados suficientes que indiquem ser esta nova configuração adequada ou não. Naturalmente, não há dúvidas quanto à questão da igualdade de direitos, claramente defendida em O Livro dos Espíritos. Na prática, pelo menos no que se refere aos trabalhos espíritas, de exposição doutrinária, evangelização infantojuvenil, administrativos ou mediúnicos, não há restrições à participação de homens e mulheres. Em segundo lugar, diferentemente de qualquer pensamento que reduza o gênero à construção social, o Espiritismo admite como presentes, além do componente cultural, o aspecto biológico e as características que o Espírito já traz de existências anteriores. Logo, ser homem ou ser mulher, sentir-se homem ou sentir-se mulher, não é uma questão apenas social ou cultural. Suas diferenças, porém, não devem colocá-los em qualquer situação de subordinação de um ao outro, mas de ação complementar e conjunta em prol de uma sociedade melhor.


[1] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 200 a 202

[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita, jan/1866

[3] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 258 a 273

[4] DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

[5] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 817

[6] Idem, q. 818

[7] Ibid., q. 822a. Ver também Revista Espírita, jan/1866 e DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

[8] DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

[9] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 202 (comentário de Kardec)

[10] Idem, q. 819

[11] Ibid., q. 820 (comentário de Kardec)

[12] Ibid., q. 822a

[13] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Vianna de Carvalho, Atualidade do pensamento espírita, q. 12

[14] Idem

[15] KARDEC, Allan. Revista Espírita, jun/1867

[16] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 821

[17] DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

[18] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Encontro com a paz e a saúde, c. 4

[19] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 694

[20] Idem, q. 699

[21] XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito Emmanuel. O Consolador, q. 67

[22] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, introdução, II

[23] KARDEC, Allan. A Gênese, c. 1, i. 55

[24] KARDEC, Allan. Revista Espírita, jun/1867

[25] XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito André Luiz. No mundo maior, c. 11. Ver também XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito André Luiz. Evolução em dois mundos, 2a p., c. 12.

[26] KARDEC, Allan. Revista Espírita, jan/1866. Ver também DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

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