Contra principia negantem non est disputandum

Humberto Schubert Coelho

São preciso alguns anos para formar-se um médico medíocre e três quartas partes para formar-se um sábio, e querem em algumas horas adquirir a Ciência do Infinito! Que ninguém, portanto, se iluda: o estudo do Espiritismo é imenso; diz respeito a todas as questões da metafísica e da ordem social. Será de admirar que demande tempo, muito tempo mesmo?

O Livro dos Espíritos, Introdução, XIII

A História, por sua vez, comprova que a maioria desses princípios foi professada pelos mais eminentes homens de tempos antigos e modernos, trazendo a eles, desse modo, a sua sanção.

O Livro dos Espíritos, Aviso

O Movimeno Espírita é uma definição genérica para um fenômeno social que agrega instituições e pessoas em caráter ultraliberal e ultraindividualista, desconhecendo qualquer mecanismo de autoridade e coerção doutrinal e filosófica além dos mecanismos através dos quais seres humanos se afastam e excluem mutuamente diante das dificuldades de diálogo. Não estranha, portanto, que a manutenção de alguma coerência de princípios seja tarefa árdua, mesmo que, por outro lado, haja suficiente consciência de que a traição dos princípios é fator excludente da identidade.

É uma verdade lógica irrefutável que não pode haver debate contra aqueles que negam os princípios fundamentais envolvidos na discussão, como diz o título de nosso ensaio, mas, se um desses princípios fundamentais é a livre interpretação não se pode também admitir que mecanismos de afirmação de uma interpretação oficial existam, o que tornaria o remédio pior que a doença.

Tendo de lidar, portanto, com a ambiguidade e a flexibilidade interpretativa, o que espíritas devem responsavelmente fazer diante de desvios doutrinais é a sua defesa intelectual, o que jamais pode ser questionado como algo deletério.

Isso nos leva, contudo, à questão: faz-se defesa intelectual (teórica) da Doutrina Espírita, ou mais frequentemente a defesa política ou partidária da mesma?

Apenas como exemplo, seria justo considerar a atitude de espíritas frente à presença inevitável das teologias católica e protestante, quando não credos populares que, inserindo-se no imaginário popular espírita, passam a borrar as linhas dos princípios propriamente espíritas em favor do tão sedutor e tão brasileiro sincretismo. Na outra face da moeda, se temos devotos de São Francisco e advogados da virgindade de Maria entre as lideranças espíritas, é também verdade que um outro partido não menos aguerrido prega furiosamente a destruição de todas as pontes e vínculos com essas matrizes religiosas pretéritas. Onde o bom senso; onde a verdade?

Pelos dois fragmentos de Kardec citados no início do texto, podemos inferir que o estudo rigoroso, sistemático e analítico, que não dispensa o cuidado com o contexto da questão, é uma exigência absoluta senão da prática geral, ao menos do conhecimento qualificado do Espiritismo. Paralelamente, quis enfatizar também a importância de uma visão histórica dos fenômenos e ideias espíritas, para que não se tivesse a ideia de uma seita surgida do nada, qual profetismo moderno, que lança sobre regaço da Humanidade mais um pacote de crenças dogmáticas e injustificáveis.

Seria proveitoso nos demorássemos mais sobre o segundo ponto, como exemplo concreto do primeiro, exigência mais geral de estudo e qualificação do trabalhador espírita.

Se é verdade que a história comprova a perenidade e a onipresença dos princípios espíritas, porque não se os discute no Centro Espírita? Por que não há em número minimamente suficiente artigos e livros, palestras e grupos de estudo sobre, por exemplo, princípios espíritas em outras tradições religiosas, em filosofias de diversos países e épocas, no imaginário popular de diversas culturas? Por que, para o nosso assombro, prefere-se a atitude sectária das religiões, mundanas, de separar e diferenciar o Espiritismo de todas as outras ideias, ao invés de apontar a sua superioridade filosófica e espiritualismo transcendente justamente pelo fato de ele estar presente, indiferenciadamente, entre muçulmanos e hindus, japoneses e judeus, pagãos e índios?

Disso temos suficiente evidência na Revista Espírita, além da literatura espírita posterior, como no caso de Léon Denis em Depois da Morte, apenas para citar um de numerosíssimos exemplos.

Para um exemplo negativo, por outro lado, podemos considerar o quão letárgico tem sido o Movimento Espírita em acolher seriamente sugestões de Kardec como a da introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo, em que o Codificador dá destaque para Sócrates e Platão como precursores das ideias cristãs e espíritas. Sende eles precursores dessas duas revelações e, por óbvio, missionários destinados a preparar-lhes o caminho, poderiam eles não aparecer em palestras e grupos de estudo? Que o indivíduo ignore a referência é compreensível, mas pode um movimento que se dedica seriamente ao estudo do Espiritismo ignorar tão óbvia referência?

Um outro exemplo semelhante é o do índice biográfio ao final da Revista Espírita, onde Kardec evidencia ter estudado as vidas e as obras dos espíritos comunicantes. Descartadas algumas personalidades bíblicas, como o próprio Jesus, Paulo e alguns apóstolos, que figuras têm merecido o estudo detido dos espíritas? Não seria o caso de estarmos acomodados, passivos, esperando que obras psicografadas preencham esta lacuna? Até porque, até agora tem sido quase a única fonte de estudos sobre a Antiguidade, a Idade Média, o Renascimento e a Reforma entre os espíritas, apesar de louváveis exceções, como algumas das obras de Hermínio Miranda.

O Espiritismo é coisa nova, mas os fenômenos e princípios que o sustentam são da ordem natural e amplamente presentes na história humana. É imprescindível que assumamos uma postura mais consequente diante de seus fundamentos lógicos, que por sua vez apontam para referências factuais e científicas, na história e na natureza. Se não aderirmos aos princípios estamos, na verdade, negando-os, e não nos será lícito lamentar quando controvérsias as mais esdrúxulas campearem dominantes.


[1] “Não é necessário discutir com alguém que nega os princípios”

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