O fenômeno distópico sob a ótica espírita

José Fernando

Thomas Morus, em sua magistral obra Utopia, escrita em 1516, propondo um Estado que funcionasse impecavelmente, criou uma ilha-reino imaginária que seria a solução para todos os problemas, tanto administrativos como sociais. Um mundo absolutamente perfeito. Poderíamos considerar, talvez, por enquanto, que dita obra seria um excesso de otimismo.

Lá pelo final do século XVIII, destacaram-se o avanço da Revolução Industrial, que teve início na Inglaterra, e suas consequências desastrosas para a classe do proletariado que sobrevivia penosamente em cortiços e nas periferias das grandes cidades, sem repouso nem leis trabalhistas que a protegesse. Nesse contexto desalentador, no ano de 1868, o pensador John Stuart Mill, em um discurso inflamado no Parlamento de Londres, usou, pela primeira vez, a palavra “distopia” como contrassenso ao verbete “utopia”, referindo-se ao descalabro social do seu tempo. Cunhou a expressão “distopia” como lugar ruim, infeliz, denunciando o termo “utopia”, como um lugar tido como bom e feliz e que, na verdade, não existiria nem mesmo na sua própria etimologia, pois “u”, em grego, significa negação, um não-lugar.

Este conceito veio a tomar vulto a partir do momento em que o escritor George Orwell, em 1949, lançou o livro intitulado 1984, uma visão catastrófica do futuro, originada nos comportamentos arbitrários de ditadores tirânicos, principalmente Stalin, na antiga União Soviética, os quais, em seu tempo, combatia com ardor. Neste livro, o herói Winston vive aprisionado na engrenagem de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas, cada qual, vive amarguradamente solitário. Seguiram-se várias outras obras como Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e outras. Mais recentemente a onda distópica teve evidência por meio da cinematografia contemporânea, com filmes campeões de bilheteria altamente violentos e séries premiadas que insinuam distorções morais como pano de fundo em um mundo sem freios e sem pudor.

É fato que esta conjuntura pessimista, infelizmente, vem norteando a sociedade hodierna, tendo em vista que o progresso tecnológico não trouxe a paz e a harmonia tão desejadas por todos. Este cenário escatológico foi também anunciado por Jesus Cristo que, em seus sermões proféticos, deixou-nos enfáticos alertas do que viria acontecer, explícitos quando afirma o seguinte:

E ouvireis de guerras e de rumores de guerras; olhai, não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares.

Mt. 24:6-7

Por conseguinte, o raciocínio amedrontador, calcado nas trágicas experiências vivenciadas pela Humanidade no passado e se estendendo aos tempos atuais, certamente, induz-nos a prever um futuro mais que sombrio. Porém, àquele que cultiva a sua fé raciocinada vislumbra-se uma chama de esperança. É o que nos ensinam os Espíritos nobres respondendo à questão 784 de O Livro dos Espíritos, tão bem formulada por Allan Kardec:

Bastante grande é a perversidade do homem. Não parece que, pelo menos do ponto de vista moral, ele, em vez de avançar, caminha aos recuos?

Enganas-te. Observa bem o conjunto e verás que o homem se adianta, pois que melhor compreende o que é mal, e vai dia a dia reprimindo os abusos. Faz-se mister que o mal chegue ao excesso, para tornar compreensível a necessidade do bem e das reformas.

À luz meridiana deste sensato e sublime ensinamento, tão bem inspirado pelos Numes Tutelares que afiançaram a Codificação Kardequiana, podemos afirmar que o otimismo preponderante na “utopia” de Thomas Morus se tornará uma realidade em algum momento de nossas vidas. Para este ilustre escritor não faltaram créditos de sabedoria e de vida impecável para que tenha sido bem inspirado em sua obra. Além de grande estadista, foi cidadão extremamente correto, merecendo elogio eloquente do piedoso teólogo cristão Erasmo de Roterdã, seu contemporâneo:

É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição. Tem horas fixas em que dirige a Deus suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais profundo do coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros[1].

Não obstante persistirem rumores de guerra e de pestes, ecoam, ainda, no mais profundo de nosso ser, as palavras consoladoras do Mestre Jesus: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Mt 5:5), e a profecia das Escrituras: “Mas os mansos herdarão a terra, e se deleitarão na abundância de paz” (Salmos 37:11).


[1] ROCHA, Alan. A caverna do saber – uma aventura pelo mundo da Filosofia. São Paulo: Clube de autores, 2012, p. 83

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