Homo e Transexualidade segundo o Espiritismo – 2ª parte

Daniel Salomão Silva

Na primeira parte deste texto, discutimos a visão espírita sobre a homo e a transexualidade, concluindo que não há bases na Doutrina Espírita para qualquer rejeição a homo e transexuais, discriminações ou condenações de qualquer tipo. Entretanto, se a postura adequada do indivíduo perante a pessoa homo e transexual é bem consensual no Espiritismo, o mesmo não se pode dizer da visão espírita sobre como o próprio indivíduo deve lidar, intimamente, com sua situação particular. Em outras palavras, mesmo sentindo-se acolhido pelo Movimento Espírita, identificando sua orientação homossexual ou sua identidade transexual, é adequado que a vivencie? Ainda de forma mais clara, é saudável a prática sexual entre pessoas de sexo biológico opostos, sejam homo ou transexuais?

Todavia, antes de qualquer coisa, importante é destacar que este texto não expõe a opinião de seu autor ou da revista “O Médium”, mas reflexões sobre as informações que temos até o momento em textos espíritas.

Em relação ao casamento homossexual, é bem interessante considerar até mesmo as formas como certas perguntas e respostas aparecem em O Livro dos Espíritos, que não tratam o casamento exclusivamente como união de um homem e uma mulher, mas como “a união de dois seres”[i]. Há também posições mais recentes explicitamente tolerantes ao casamento[ii] [iii] [iv] e à adoção de crianças por casais homossexuais[v]. Afirma José Raul Teixeira:

Como é que poderemos imaginar que será melhor para uma criança ser criada na rua, ao relento, submetida a todo o tipo de execração, a ser criada, nutrida, abençoada por um lar de um casal homossexual? (…)

Logo, não temos que entrar nessa discussão, que é apenas tola e preconceituosa. Aquele que tenha amor para dar que o dê e, dessa maneira, estaremos colaborando com Deus na obra da Criação. Não importa qual seja nossa orientação sexual, importa qual seja a orientação do nosso sentimento, do nosso amor, do nosso coração. Há tantos casais hetero, duros, frios, indiferentes. Ninguém se preocupe com isso. Na medida em que as leis o permitam, adotem as crianças. Na medida que o coração o peça, adotem as crianças e que sejamos todos muito felizes[vi].

Entretanto, a recomendação de “sublimação” do desejo sexual, abstinência ou “absoluta castidade” para homossexuais é comum nos discursos espíritas e aparece na obra Forças sexuais da alma:

A ajuda terapêutica pode ser feita desde quando haja o desejo, por parte do próprio indivíduo, de correção e equilíbrio. O tratamento básico, para essas distonias, é tentar direcionar a mente-vontade em realizações autênticas e construtivas, ao lado de absoluta castidade em relação aos seus impulsos sexuais, de periferia, sempre atados aos sentidos [grifos nossos][vii].

E também, segundo o Espírito Bezerra de Menezes em obra do Espírito Manoel Ph. de Miranda,

Quando, porém, o indivíduo se utiliza da função genésica para o prazer continuado sem responsabilidade, derivando para os estímulos que as aberrações da luxúria o convidam, incide em gravame que é convidado a corrigir, na próxima oportunidade da reencarnação, sob lesões da alma enferma, que se exteriorizam em disfunções genésicas, em anomalias e doenças do aparelho genital, ou na área moral, mediante os dolorosos conflitos que maceram, nos quais o ser íntimo difere in totum do ser físico…  Seja, no entanto, qual for a ocorrência regularizadora, ela deve ser enfrentada com elevação moral e consciência tranquila, recompondo, através dos atos corretos, a paisagem mental e emocional afetada. Não há, para essas marcas da alma, outro tratamento que eu conheça, senão a superação do problema mediante a abstinência, canalizando-se as forças sexuais para outros labores e aspirações, igualmente propiciadores de gozo profundo e estímulo constante para mais altos voos e conquistas [últimos grifos nossos][viii].

Para o Espírito Camilo,

O fenômeno homossexualismo [sic], em si mesmo, impõe aos que por ele estão assinalados um regime de imperiosas disciplinas em sentido amplo, capazes de ensejar à alma, se atendidas, benção de venturas crescentes a projetarem luzes de paz, de harmonia para o amanhã[ix].

Se o amor é natural e saudável entre indivíduos de qualquer sexo, orientação e identidade sexual,

O homossexual não necessitará mergulhar nos pântanos da pederastia, tampouco as homossexuais carecerão perder-se nos vícios do lesbianismo, nas voragens da relação carnal[x].

Logo, para ele, é adequado que dois indivíduos do mesmo sexo se amem, desde que sem relações sexuais.

Pela mediunidade de Divaldo Franco, é considerado como uso adequado da função sexual a “sintonia entre a psicologia e a fisiologia da polaridade”. Logo, poderíamos disso deduzir que ou o encarnado insiste em “alterar” sua psicologia (identidade de gênero ou orientação sexual) para se adequar ao sexo ou abstém-se de vivenciar sexualmente sua orientação, “evitando a permissão do uso indevido”[xi] [xii].

Parece-nos que, para Léon Denis, a relação homossexual nem deve ser considerada como possível. Em seu pensamento, no caso de almas que escolhessem reencarnar sempre juntas, como seria possível se relacionarem no caso de alteração de sexo em uma delas?

Muitas almas juntam-se em pares e se propõem a evoluir, unidas para sempre, tanto na alegria como na dor. São chamadas de almas irmãs; o seu número é mais considerável do que geralmente se crê. Realizam a forma mais completa e mais perfeita da vida e do sentimento, e dão às outras almas o exemplo de um amor fiel, inalterável, profundo; podem ser reconhecidas por essa característica. O que seria de sua afeição, sua relação, seu destino, se a mudança de sexo fosse uma necessidade, uma lei? [grifos nossos][xiii]

Em relação à transexualidade, um recurso agora às mãos da Medicina é a cirurgia de redesignação sexual, sobre a qual encontramos algumas posições em textos espíritas. Na obra Lições de Sabedoria, ao ser questionado sobre “as cirurgias médicas para a mudança de sexo”, o Espírito Emmanuel afirma que se enquadram “nos princípios do livre-arbítrio com as respectivas derivações na lei de causa e efeito”[xiv]. Porém, mais à frente, em trecho que preferimos citar integralmente, o próprio Francisco Cândido Xavier diz:

Este é um assunto que vem sendo muito debatido em toda a parte. Nós tivemos uma comunicação de uma pessoa que desencarnou em Paris e se submeteu a esse tipo de cirurgia, trocou o nome, mas, ao chegar no espaço, seus familiares lhe disseram que enquanto fosse o tempo em que devia durar a sua permanência na Terra, ele teria de usar o nome de homem com o qual se caracterizava neste mundo. É possível, em casos de pessoas portadoras de dificuldades morfológicas muito grandes, quando a criatura nasce com defeitos congênitos reconhecidos, que se utilize da cirurgia plástica para regenerar-se. É um direito que lhe cabe. Agora, simplesmente por uma questão psicológica, por exemplo, para o homem que nasce com tendências femininas ou para a mulher que manifesta, desde cedo, tendências masculinas, eu creio que, só por isso, não se deve fazer essa cirurgia. Vamos esperar que o médico ajude o cliente a pensar muito, porque se o médico encontra um corpo morfologicamente perfeito, com as características masculinas ou femininas, creio que seria contrariar demais a lei de causa e efeito e a necessidade de segregação daquele espírito na cabine do corpo, porque a operação seria apenas uma questão de caça-prazer (outubro de 1996)[xv].

Logo, para ele, este tipo de cirurgia não é adequado. Neste mesmo sentido, o Espírito Joanna de Ângelis entende que

na vã tentativa de mudar-se o sexo, na formação embrionária ou noutro período qualquer da existência física, desafia-se a lei de harmonia vigente na Criação, o que provocará distúrbios sem nome na personalidade e na vida mental de quem lhe sofrer a ingerência[xvi].

O médium da mensagem acima também relata posição semelhante, mas estende sua crítica a todos, transexuais ou não, que neguem o próprio corpo e promovam transformações físicas com finalidades eróticas[xvii]. Mesmo apresentando identidade sexual diferente, entende que o encarnado deve se aceitar fisicamente, “pois é de fundamental importância que o Espírito reencarnado se sinta perfeitamente identificado com a sua anatomia sexual”[xviii] [xix]. Entendemos, porém, que a afirmação de que esta opção pela redesignação seria apenas “uma questão de caça-prazer” é bem generalista, pois a incompatibilidade psicológica entre gênero e corpo talvez tenha implicações mais amplas. Importante é salientar que existem posições mais recentes de espíritas favoráveis à cirurgia de redesignação sexual, como as de Jaider Rodrigues de Paulo e Andrei Moreira, quando esta é a vontade do indivíduo. Para eles, este procedimento aliviaria o sofrimento psíquico decorrente da distonia entre a identidade de gênero e o sexo biológico, prevenindo, muitas vezes, males maiores, como a dependência química, a prostituição, a delinquência, a loucura e o suicídio. Além disso, a cirurgia não isentaria o transexual das “reflexões sobre os porquês e para quês dessa experiência” [xx].

Quanto à questão da determinação artificial de sexo no período da gestação, também não recomendada acima pelo Espírito Joanna de Ângelis, apesar de tecnicamente possível, igualmente poderia imprimir “graves complicações ao foro íntimo de quantos fossem submetidos a tais processos de experimentação, positivamente contrários à inteligência da vida que reflete a sabedoria de Deus[xxi]”.

Todavia, para o Espírito André Luiz, após reflexões sobre a sexualidade humana,

Claro está que, assim como se submete o diamante ao disco do lapidário, para atingir o pedestal da beleza, assim também o instinto sexual, para coroar-se com as glórias do êxtase, há que dobrar-se aos imperativos da responsabilidade, às exigências da disciplina, aos ditames da renúncia. Estas conclusões, contudo, não nos devem induzir a programas de santificação compulsória no mundo carnal [grifos nossos][xxii].

Ou seja, segundo este ponto de vista, o enfrentamento de possíveis “conflitos” da sexualidade não significa a imposição de tal ou qual comportamento a si mesmo. Desta forma, mesmo sendo a “renúncia”, a “sublimação” das “vontades” ou o celibato um possível ideal para o indivíduo homossexual, por esta perspectiva parece-nos compreensível que vivencie de forma equilibrada sua homossexualidade, da mesma forma que o heterossexual deve viver, sem “santificação compulsória”. Se a educação direcionada ao homossexual deve ser idêntica à que recebe o heterossexual, como vimos na primeira parte[xxiii], as orientações devem ser de monogamia, respeito ao parceiro etc., não de celibato forçado. Cabe ao indivíduo a avaliação íntima sobre se deve ou não vivenciar sua orientação sexual, consciente de que a maior parte dos textos espíritas mais lidos, publicados até o presente momento, recomenda que não a vivencie, ou, mais claramente, que não tenha relações sexuais.

Apenas nesta próxima citação, mais recente, entendemos como possível um entendimento oposto.

Seja, no entanto, qual for, a causa anterior que responde pela atual conduta homossexual, por esse conteúdo anima que se encontra no ser masculino, assim como pelo animus que faz parte da constituição feminina, adquirindo prevalência e impondo a necessidade de atendimento, a conduta moral do Espírito irá delinear-lhe a existência harmônica ou conflitiva, insatisfeita ou não, pela qual transitará. O fato de alguém amar outrem do mesmo sexo não significa distúrbio ou desequilíbrio da personalidade, mas uma opção que merece respeito, podendo também ser considerada como uma certa predisposição fisiológica. Pode-se considerar como uma necessidade sexual diferente com objetivos experimentais no processo da evolução [grifos nossos][xxiv].

A autora espiritual, ao utilizar a expressão “necessidade sexual” após comentar sobre “amor” entre pessoas do mesmo sexo, parece entender a prática sexual entre homossexuais como algo que também “não significa distúrbio ou desequilíbrio da personalidade”.

Enfim, quanto à vivência da homossexualidade, entendemos que não há consenso. Todavia, fica claro que, em boa parte dos textos acima, o problema está na relação sexual entre pessoas do mesmo sexo biológico (trans ou homossexuais) e não no amor entre elas. Estes textos indicam ser a abstinência sexual a melhor atitude por parte do homossexual, porém alguns deles podem ser interpretados em outro sentido: relacionar-se de acordo com sua orientação homossexual, desde que sob parâmetros também adequados aos heterossexuais, pode não ser um problema. Naturalmente, nenhuma destas conclusões nos autoriza a ter qualquer atitude discriminatória ou pensamento que associe ao homossexual desequilíbrios morais, problema de caráter, patologia ou “safadeza”.

Além disso, nos textos citados é comum entender a homossexualidade de forma associada ou derivada da condição de transexualidade, o que não corresponde ao entendimento atual nos círculos não espíritas, como apresentado na primeira parte deste texto. Segundo estes, é possível haver ou não associação entre estas duas experiências. Como exemplo, por esta compreensão, o indivíduo em corpo masculino, que se identifica como de orientação homossexual, pode continuar se sentindo intimamente como homem, querer vestir-se como homem etc. Todavia, do ponto de vista espírita, poderíamos nos questionar, ainda sem resposta, porque alguns Espíritos reencarnariam na condição de homo e outros na de transexualidade, sendo que as causas para ambas, na literatura espírita atual, parecem-nos idênticas.

Concluindo, é sempre importante destacar o caráter progressivo da Doutrina Espírita, sempre aberta à análise crítica de seus postulados. Em primeiro lugar, segundo Kardec, o Espiritismo “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria”. Logo, se conclusões científicas consensuais, o que ainda não identificamos, apontarem para entendimentos diferentes, a Doutrina Espírita as acolherá, pois, “caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”[xxv]. Em segundo lugar, pelo método que nos deixou, o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, admitimos como seguro um novo conhecimento, por vias mediúnicas, quando muitas mensagens recebidas por médiuns e Espíritos diferentes, e em locais diferentes, o atestam de forma racional e concordante[xxvi]. Logo, se ainda não há concordância em todos os aspectos, entendemos que a conclusão sobre homo e transexualidade ainda está em construção.

Aguardemos com caridade e sem precipitações.


[i] KARDEC, Allan. O Livros dos Espíritos, q. 695

[ii] FRANCO, Divaldo. Divaldo Franco responde, v. 2, “Homossexualidade”

[iii] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Ilumina-te, c. 24

[iv] NOBRE, Marlene R. Severino. Lições de Sabedoria, c. 36

[v] FRANCO, Divaldo. Divaldo Franco responde, v. 2, “Homossexualidade”

[vi] TEIXEIRA, José Raul. Transcrição do Programa Vida e Valores, n° 171, sob coordenação da FEP, exibido pela NET, Canal 20, Curitiba, em 13/09/2009. Disponível no DVD Vida e Valores, v. 4

[vii] ANDREA, Jorge. Forças sexuais da alma, c. 4

[viii] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. Loucura e Obsessão, c. 5

[ix] TEIXEIRA, José Raul, pelo Espírito Camilo. Educação e vivências, c. 10

[x] Idem

[xi] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Dias gloriosos, c. 14

[xii] FRANCO, Divaldo. Divaldo Franco responde, v. 2, “Homossexualidade”

[xiii] DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor, 2a p., c. 13

[xiv] NOBRE, Marlene R. Severino. Lições de Sabedoria, c. 36

[xv] Idem, c. 37

[xvi] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Dias gloriosos, c. 14

[xvii] FRANCO, Divaldo. Divaldo Franco responde, v. 2, “Homossexualidade”

[xviii] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Dias gloriosos, c. 14

[xix] FRANCO, Divaldo. Divaldo Franco responde, v. 2, “Homossexualidade”

[xx] MOREIRA, Andrei. Transexualidades à luz do Espírito imortal, prefácio, c. 4 e 5

[xxi] XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito André Luiz. Evolução em dois mundos, 2a p., c. 16

[xxii] XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito André Luiz. No mundo maior, c. 11

[xxiii] XAVIER, Francisco Cândido, pelo Espírito Emmanuel. Vida e sexo, c. 21

[xxiv] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Encontro com a paz e a saúde, c. 8

[xxv] KARDEC, Allan. A Gênese, c. 1, i. 55

[xxvi] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, introdução, II

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