Reflexões sobre a Assistência e a Promoção Social Espíritas

Aníbia Alessandra Mayer Duarte Alves

Que fique claro que não há pretensão alguma aqui em desmerecer os trabalhos realizados pelo DAPSE (Departamento de Assistência e Promoção Social Espírita) das Casas Espíritas, mas apenas de compartilhar algumas percepções que fomentem possíveis reflexões.

As instituições espíritas têm por base o estudo evangélico-doutrinário e a assistência espiritual1. Algumas instituições ofertam ainda a assistência material emergencial através das doações de alimentos, roupas, enxovais, e outras conseguem atuar para além do emergencial, ofertando ou encaminhando a população atendida para capacitações profissionais. 

A história nos mostra que, de tempos em tempos, as sociedades se reorganizam para enfrentar suas mazelas e, dentre elas, a material. Em 1857, em O Livro dos Espíritos, os espíritos já nos trazem noções claras de justiça social quando afirmam que “uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na justiça (…) deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns”2.

Particularmente em nosso país, vimos esse entendimento ganhar corpo a partir da Constituição Federal (CF) em 1988, especialmente no que tange à assistência social. Em seu artigo 203, a CF prevê que a “assistência social será prestada a quem dela necessitar” aos que estiverem em situação de vulnerabilidade social. Desta forma, o Estado brasileiro passou a melhor se organizar para atender a este segmento populacional e, em 1993, foi promulgada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que vem regulamentar e estabelecer normas e critérios para organização da assistência social. Em 2004, foi aprovada a Política Nacional de Assistência Social – PNAS, que estabelece princípios e diretrizes para a implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, um sistema que reorganiza os serviços, programas, projetos e benefícios relativos à assistência social, considerando as cidadãs e os cidadãos que dela necessitam. Garante proteção social básica e especial de média e alta complexidade, tendo a centralidade na família e base no território, ou seja, no espaço social onde seus usuários vivem.

Percebemos assim como nossa sociedade, ainda que imperfeita, ao longo dos anos vem buscando aprimorar suas formas de atender àqueles que, por muitos anos, tiveram suas necessidades sociais atendidas majoritariamente através da caridade individual ou coletiva.

Podemos observar, então, que a visão do papel da sociedade na Codificação Kardequiana (já apontado acima) converge com o preconizado pela Política de Assistência Social vigente, quando esta, em seu art. 1o, afirma que “a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política (…) que provê os mínimos sociais (…) para garantir o atendimento às necessidades básicas”3.

Os textos constitucionais garantem que todos têm direito à vida e entende que, para uma vida digna, as pessoas necessitam dos mínimos sociais, como o direito à alimentação, à saúde, à educação, dentre outros, O não acesso a esses mínimos sociais tornam os indivíduos/família alvo das ações das Políticas Públicas. O direito à alimentação é hoje previsto também na CF em seu artigo 6o (através da Emenda Constitucional no 90 de 2015). Em 2010, a Emenda Constitucional no 64 já havia incluído este entendimento no rol dos direitos sociais individuais e coletivos. Com isso, a decisão por uma prestação de “assistência social” (assistencialismo), que busque atender às necessidades emergenciais básicas através de doações de alimentos, roupas, remédios etc., coexistindo com a Política Pública de Assistência Social, deve ser realizada considerando os avanços legais que obtivemos, materializados na LOAS.

Todavia, observamos que em algumas Casas Espíritas, principalmente nas que atuam especificamente com a assistência material emergencial, essa assistência é conjugada obrigatoriamente à espiritual. Problema nenhum haverá nisso desde que seja manifestado desejo, pela pessoa atendida, de receber, junto com a doação material, a assistência espiritual. Na verdade, é mesmo fundamental e indispensável que seja ofertada à pessoa a oportunidade de ouvir a mensagem espírita! O que propomos é que os assistidos sejam convidados fraternalmente a participar dos grupos de estudo e palestras, e não obrigados pela necessidade de se receber a cesta básica.

Nesse sentido, o autor Pedro Simões, em seu livro Dá-me de Comer: A Assistência Social Espírita, já nos alerta para a “conotação própria que os espíritas em geral dão à assistência social”, pois, ao se prestá-la, a discussão da cidadania torna-se secundária e subordinada à dimensão espiritual. Segundo o autor, “afirma-se que todos têm direito à vida, mas esse direito é atendido, tendo como parâmetro, primeiro, a ‘vida do Espírito’ e depois a ‘vida da matéria’”4. Aponta ainda que alguns espíritas, ao criticarem a caridade material (dita esmola, na época), não o fazem da forma como está na questão 888a. Há uma ressignificação da expressão, pois, na Codificação, a crítica à esmola é referente à forma: não deve humilhar. Como estudiosos da Doutrina Espírita, entendemos a importância da educação do caráter e dos sentimentos5, porém, na questão 888 de O Livro dos Espíritos, o que está claro é que a assistência puramente material não é reprovada, mas sim a maneira pela qual habitualmente é dada, o que está de acordo com o pautado pela Política de Assistência Social, quando em seus princípios defende “o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia”6.

O próprio Kardec, ao analisar o Projeto de Caixa Geral de Socorro e outras Instituições para os Espíritas, publicado na Revista Espirita de julho de 1866, faz a seguinte consideração:

O Espiritismo não forma, nem deve formar classe distinta, já que se dirige a todos; por seu princípio mesmo deve estender sua caridade indistintamente, sem inquirir da crença, porque todos os homens são irmãos; se fundar instituições de caridade exclusivas para os seus adeptos, será forçado a perguntar a quem reclama assistência: “Sois dos nossos? Que provas nos dais? Se não, nada podemos fazer por vós”. Assim, mereceria a censura de intolerância, que dirige aos outros. Não; para fazer o bem, o espírita não deve sondar a consciência e a opinião e, ainda que tivesse à sua frente um inimigo de sua fé, mas infeliz, deve vir em seu auxílio nos limites de suas faculdades. É agindo assim que o Espiritismo mostrará o que é e provará que vale mais do que o que lhe opõem [grifos nossos].

Esta recomendação é bem coerente com a mensagem assinada por São Luiz no último item do capítulo 13 de O Evangelho segundo o Espiritismo, que recomenda nem mesmo procurar saber a crença do necessitado que nos procura, pois toda ideia de seita ou partido deve ser abolida, “visto que todos os homens são irmãos”. Além disso, neste mesmo capítulo, que oferece uma “orientação”, um modo de “se fazer a caridade”, não há em momento algum a indicação de se conjugar obrigatoriamente a assistência espiritual à material (no cuidado ou na doação) que está sendo prestada. Há sim, a todo o momento, a indicação da necessidade do respeito para com a pessoa objeto da ação da caridade.

O documento Orientação à Assistência e Promoção Social Espírita da FEB, de março de 2018, ao reconhecer que “muitas pessoas atendidas encontram-se sem acesso a direitos, e que este é um fato recorrente em famílias que não estão inseridas no mercado formal ou informal de trabalho”, orienta que, “de acordo com as possibilidades do Centro Espírita, podem ser distribuídos gêneros alimentícios, vestuário, medicamentos e demais utilidades, em caráter de atendimento emergencial, sempre vinculado, porém, ao programa de promoção desenvolvido pela entidade, que conjuga ajuda material e espiritual”7. No entanto, é bom frisar que, na introdução de seu Plano de Ação, está clara a orientação de que o atendimento deve ser prestado sem imposição religiosa. Vincular é oportunizar, não obrigar!

Assim, é salutar atentarmos para como as atividades assistenciais têm sido realizadas nos Centros Espíritas ao qual estamos vinculados. Qual tem sido nosso objetivo e como tem sido de fato o nosso exercício da caridade? Neste ponto, ressaltamos: que seja sempre oferecida ao assistido a oportunidade de ouvir sobre o Evangelho e a Doutrina Espírita, mas que reflitamos sobre os métodos que temos utilizado para que ele participe dessas atividades de cunho religioso.

Entendemos também como salutar a discussão de um outro aspecto. Muitas vezes, pela própria estrutura, pela impossibilidade de a Casa Espírita disponibilizar um Serviço Social, a ação do DAPSE é centrada no emergencial, o que muitas vezes se torna constante (por exemplo, a doação de cestas básicas, prevista para um trimestre, que se estende para meses ou anos). Quando isso ocorre, é essencial que o trabalhador espírita tenha clareza de que, numa conjuntura de grande desemprego, pouca oferta de trabalho, pouca possibilidade de qualificação, dentre outras coisas, isso é aceitável. Mesmo em programas governamentais, como os de enfrentamento à pobreza (Bolsa Família), o apoio pode se estender por anos.

Enfim, se a Casa espírita se propôs a atuar na caridade material/emergencial, que esta seja sem julgamentos de valor, sem rótulos, com respeito à pessoa/família objeto da ação assistencial. Que se busque, além do estudo do Evangelho e da Doutrina Espírita, conhecer também a LOAS e a rede socioassistencial e, dentro das possibilidades, que se busquem parcerias com CRASS, escolas e outras instituições. E que fique claro que essa cesta básica distribuída, às vezes há anos à mesma família, com certeza não garantirá sua saída da situação de pobreza, mas trará alento aos seus membros, filhos, idosos e pessoas com deficiência, por saberem que, em meio às intempéries da vida, ao menos um prato de comida não há de faltar.


  1. Entendemos, neste texto, que a tarefa de Atendimento Espiritual inclui esclarecimento doutrinário (porpalestras ou grupos), diálogo fraterno e fluidoterapia
  2. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 76a ed., Rio de Janeiro: FEB, q. 888
  3. LOAS (Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993)
  4. SIMÕES, Pedro. Dá-me de Comer: A Assistência Social Espírita. v. 6, Coleção Espiritismo na Universidade. São Paulo: CCDPE/LHIPE, 2015
  5. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 76a ed., Rio de Janeiro: FEB, q. 685a
  6. LOAS (Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993), art. 4, incisos III e IV
  7. Orientação à Assistência e Promoção Social Espírita, Rio de Janeiro: FEB, 2018, item 6.3.2

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