Jung e a Religião

Daniel Salomão

Figura muito citada na obra do Espírito Joanna de Ângelis, pela mediunidade de Divaldo Franco, o psiquiatra e psicoterapeuta Carl G. Jung deu ao mundo importante contribuição no campo da Psicologia Profunda. Sua Psicologia Analítica, com a qual Joanna dialoga, apresenta modelos e categorias que se enquadram bem com a proposta espírita, quando considerados pela ótica do Espírito imortal. Alinhado à proposta kardequiana de aliança entre a Ciência e a Religião, entendemos o trabalho psicográfico citado como muito importante no desenvolvimento de certos temas já trabalhados na Codificação, como “culpa”, “autoconhecimento”, “modificação íntima” etc., a partir do ferramental proposto por Jung.

Ainda que a própria Série Psicológica[i] contenha explicações sobre o modelo junguiano de compreensão da personalidade humana, outros autores espíritas têm publicado bons textos que aprofundam os conceitos debatidos.[ii] Nosso objetivo aqui é mais singelo. Mesmo que fora do ambiente espírita, importante é a seleção feita pela psicanalista junguiana Brigitte Dorst,[iii] que reúne textos de Jung sobre religião e espiritualidade, publicados na primeira metade do século XX, e que mostram, de forma introdutória, a visão religiosa desse importante pesquisador. A partir dessa obra, esse artigo apresenta uma segunda seleção, destacando e comentando trechos em diálogo com o Espiritismo.

Pensamento crítico e fatos parapsicológicos

Em primeiro lugar, diferentemente de boa parte de seus antecessores e contemporâneos, também arquitetos da Psicologia Profunda, Jung não tinha uma postura refratária à religiosidade e à espiritualidade, mas reconhecia sua importância.[iv] Contudo, não se furtava a uma postura crítica.

Em sua obra, Jung concilia tanto uma desconfiança saudável daquilo que não possui “base segura de um conhecimento real dos fatos e de suas conexões lógicas”, quanto de um pensamento científico arrogante, que se esquece de que “nada é mais vulnerável e passageiro do que as teorias científicas que sempre são meros instrumentos e nunca verdades eternas”[v]. Nesse aspecto, sua postura assemelha-se a de Allan Kardec. Quase um século antes, o Codificador exercitara seu método experimental perante os fenômenos mediúnicos, sempre criterioso e cuidadoso em suas conclusões, contudo, também reconhecendo as limitações do pensamento científico.[vi]

Contrariamente a quem atribui a Kardec certa ingenuidade perante fenômenos anímicos e mediúnicos, e que entendem que estes nem deveriam ser alvo da Ciência, Jung defende a abertura à investigação científica de “fatos parapsicológicos”, como a telepatia, por exemplo, perante a qual “a Ciência até agora escolheu (com bem poucas exceções) o caminho mais cômodo, que é o de ignorá-los”. Afinal, “a ligação da psique[vii] com o cérebro, isto é, sua limitação no espaço e no tempo, não é tão evidente nem tão indiscutível como até agora nos têm feito acreditar”.[viii] Ou seja, para o psicoterapeuta, essa “espiral do silêncio” imposta a esse tipo de reflexão nos meios acadêmicos é um equívoco. O fato de os métodos científicos atuais não serem capazes dessa abordagem não é algo necessariamente definitivo.

Existência de Deus e da alma

Nesse sentido, para Jung, dizer que uma “vivência religiosa” é um processo psíquico ou que conceitos da religião, como Deus e alma, são produtos desse processo[ix] não é contestar sua realidade, mas afirmar a parcela de construção humana desses conceitos. Kardec também considera a elaboração humana da religião, como também a limitação de nossa compreensão e linguagem para definir conceitos complexos, como “Deus”. Assim,

Na infância da Humanidade, o homem o confunde [Deus] muitas vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui; mas, à medida que nele se desenvolve o senso moral, seu pensamento penetra melhor no âmago das coisas; então, faz ideia mais justa da Divindade e, ainda que sempre incompleta, mais conforme à sã razão [grifos nossos].[x]

Em verdade, com relação a quaisquer ideias novas ou complexas, mesmo de cunho religioso, importante é considerar o contexto em que são expostas, pois, como ensinam os Espíritos, “um ensinamento que pareceu errôneo ou pueril, numa época adiantada, pode ter sido o que convinha no século em que foi divulgado”.[xi]

Todavia, o fato de nossa compreensão atual ser limitada ou mesmo equivocada não é prova da inexistência de Deus. Para Jung,

O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária, de natureza irracional, que absolutamente nada tem a ver com a questão de existência de Deus. O intelecto humano jamais encontrará uma resposta para esta questão. Muito menos pode haver qualquer prova da existência de Deus, o que, aliás, é supérfluo. A ideia de um ser todo-poderoso, divino, existe em toda parte.[xii]

Mesmo que, para o psicoterapeuta, o que os Espíritos entendem como prova da existência de Deus[xiii] não seja suficiente, essa prova se torna supérflua, dado o consenso entre os povos e a necessidade psicológica de uma causa primeira. Ademais, para uma compreensão mais plena, o “intelecto humano” é insuficiente. Porém, como a perspectiva evolucionista espírita apresenta, vamos superá-lo um dia.

Ainda para Jung, “Deus está além de qualquer compreensão humana e a imortalidade não se pode comprovar”.[xiv] Todavia, enquanto alguns afirmam com certeza que toda experiência religiosa é apenas de caráter cerebral, e que a alma é também apenas um produto do cérebro, Jung se permite a dúvida, afinal, “ninguém sabe o que é a ‘psique’, como ninguém sabe até onde a natureza da psique se estende”.[xv] Ou seja, os religiosos podem estar certos.

Importância da Religião

Por fim, para Jung, é inegável a importância da religião na estrutura psicológica da personalidade humana.[xvi] Segundo ele,

Em nossa época há muitas pessoas que perderam sua fé em uma ou outra das religiões do mundo. Já não reservam nenhum lugar para ela. Enquanto a vida flui harmoniosamente sem ela, a perda não é sentida. Sobrevindo, porém, o sofrimento, a situação muda às vezes drasticamente.[xvii]

Logo, para ele, diante da dificuldade, a crença religiosa é fundamental para a sustentação emocional do indivíduo. Também segundo Kardec e os Espíritos, “a fé no futuro” é ingrediente necessário à “felicidade terrestre”.[xviii] Nesse sentido, “o Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro”.[xix]

Segundo o psiquiatra, tentativas de se mudar ou de se anular, de uma hora para outra, tradições e concepções fundamentais à sociedade, como as religiosas, a partir de pretensos argumentos racionais ou “substitutos”, têm gerado “a falta de sentido da existência, falta essa que é uma enfermidade psíquica cuja amplidão e alcance total nossa época ainda não percebeu”.[xx] Antecipando entendimentos futuros, para Jung, “a psiconeurose, em última instância, é um sofrimento de uma alma que não encontrou seu sentido”, algo que empolgue o indivíduo “e venha conferir, enfim, ao caos e à desordem de sua alma neurótica uma forma que tenha sentido”.[xxi]

Para ele, ter Jesus como referência é um caminho nessa direção. Contudo, a forma equivocada como muitas vezes o Mestre tem sido considerado pode resultar em fracasso. Afinal, ter Jesus por modelo “deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento e exaltação. Mas o fiel, de mentalidade superficial e formalística, transforma esse modelo num objeto externo de culto”. Ao contrário, o mais adequado para Jung seria “realizar o modelo segundo os meios próprios de cada um”.[xxii] Conclusão semelhante nos apresenta o Espiritismo, quando interpreta o convite de Jesus para que sejamos perfeitos como o Pai Celestial (Mt 5:48) enquanto motivação à modificação íntima, ao esforço de se vivenciar os ensinamentos cristãos no dia a dia, vencendo as próprias imperfeições, para além de qualquer formalismo ou aparência. Afinal, “reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más”.[xxiii]

Enfim, encerrando nossas reflexões, destacamos:

  1. O diálogo do Espiritismo com a Ciência, em sua diversidade, é defendido pelo próprio Codificador. Logo, conhecer a proposta de Jung e trazer suas contribuições responsavelmente à discussão espírita, como faz o Espírito Joanna de Ângelis, pode ser muito saudável;
  2. Naturalmente, não podemos dizer que Jung aceitava os pressupostos espíritas, como a existência de Deus e a imortalidade da alma, mas que, mesmo negando a possibilidade de se prová-los cientificamente, entendia-os como possíveis;
  3. Sem se preocupar com sua veracidade, compreendia-os também como fundamentais para a Humanidade, principalmente no que se refere à construção de sentido para a existência;
  4. Assim, defendia a importância da religião para os indivíduos em vários aspectos, como geradora de sentido, como norteadora de suas ações e como caminho para uma situação de plenitude.

[i] Conjunto de obras do Espírito Joanna de Ângelis, psicografadas por Divaldo Franco, que apresentam rico diálogo entre ideias espíritas e da Psicologia, incluindo as contribuições de Jung, Freud, entre outros.

[ii] NÚCLEO DE ESTUDOS PSICOLÓGICOS JOANNA DE ÂNGELIS; FRANCO, Divaldo. Refletindo a alma. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 2011.

[iii] JUNG, Carl G. Espiritualidade e transcendência. Seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis: Vozes, 2015.

[iv] Idem, p. 156 (“Escritos diversos”).

[v] Idem, p. 93 (“A vida simbólica, p. 1”).

[vi] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2009, introdução, VII.

[vii] “Psique” é transliteração de uma palavra grega que pode ser traduzida também por “alma”.

[viii] JUNG, Carl G. Espiritualidade e transcendência. Seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 324 (“A natureza da psique”).

[ix] Idem, p. 120 (“Psicologia e alquimia”).

[x] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2009, q. 11, nota.

[xi] Idem, q. 581.

[xii] JUNG, Carl G. Espiritualidade e transcendência. Seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 46 (“Psicologia do inconsciente”) (ver também pp. 127 e 183).

[xiii] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2009, q. 4.

[xiv] JUNG, Carl G. Espiritualidade e transcendência. Seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 87 (“A vida simbólica, p. 1”).

[xv] Idem, p. 320 (“A natureza da psique”).

[xvi] Idem, p. 73 (“Psicologia e religião”).

[xvii] Idem, p. 86 (“A vida simbólica, p. 1”) (ver também pp. 96 e 157).

[xviii] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2009, q. 922.

[xix] Idem, q. 148, nota.

[xx] JUNG, Carl G. Espiritualidade e transcendência. Seleção e edição de Brigitte Dorst. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 327 (“A natureza da psique”).

[xxi] Idem, p. 152 (“Escritos diversos”) (ver também pp. 115 e 159).

[xxii] Idem, p. 118 (“Psicologia e alquimia”).

[xxiii] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 17, i. 4.

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