O que é intuição?
Daniel Salomão
Palavra de uso muito comum nos dias de hoje, foi e tem sido alvo de debates nos círculos da Filosofia e da Psicologia, eventualmente assumindo significações diferentes. A partir dos nossos dicionários, tem sido definida como “conhecimento claro, direto, imediato da verdade, sem auxílio do raciocínio”, como uma capacidade de captar a essência de algo, mas também como “pressentimento, faculdade de prever, de adivinhar.”[1]
Também tem recebido no Espiritismo, desde Kardec, variadas aplicações, o que muitas vezes pode gerar dificuldades de compreensão ao estudioso espírita. Naturalmente, ainda que nossa pesquisa tenha contemplado toda a obra do Codificador, incluindo a Revista Espírita, não citamos todas as referências que apoiam nossas conclusões, o que julgamos desnecessário. Ademais, não incluímos aqui informações de obras subsidiárias. Contudo, salvo melhor juízo, não identificamos nelas diferenças substanciais ou importantes complementos às informações da Codificação sobre o tema.
Um primeiro significado, de certa forma próximo ao apontado nos dicionários, é o de compreensão mais profunda, de entendimento mais pleno sobre alguma questão, independentemente de inspirações ou lembranças. O Codificador vai utilizar esse sentido ao falar do processo de amadurecimento de nossa concepção sobre Deus, pois os Espíritos, “à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara.”[2] Nesse caso, o uso nos parece muito adequado, pois, pelo menos para nosso estágio evolutivo e para os degraus mais próximos, compreender Deus pelo “raciocínio” é algo ainda inconcebível. Sentido semelhante pode ser encontrado na possível associação de pressentimentos “a uma espécie de dupla vista, que lhes permite [aos indivíduos] entrever as consequências das coisas atuais e o desenrolar natural dos acontecimentos.”[3] [4] Ou seja, essa intuição é uma espécie de inteligência mais apurada, que permite deduções mais complexas, logo conclusões aproximadas sobre acontecimentos futuros.
Mais comum tem sido o sentido de lembrança imperfeita ou incompleta do passado, o que pode ser associado ao conceito de ideias inatas e não necessariamente derivado de inspirações dos Espíritos. No processo evolutivo, “os conhecimentos adquiridos em cada existência não se perdem” e, ainda que os esqueçamos em parte enquanto encarnados, conservamos sua intuição, o que auxilia nosso progresso.[5] Daí a presença de faculdades extraordinárias inatas em algumas pessoas, não obtidas pelo estudo na mesma encarnação em que se manifestam, mas naturalmente consequência de progressos em experiências anteriores.[6] Em resumo, “as ideias inatas são o resultado dos conhecimentos adquiridos nas existências anteriores e que se conservaram no estado de intuição, para servirem de base à aquisição de novas ideias.”[7]
A própria noção de conceitos como existência de Deus, imortalidade da alma, reencarnação, penas e recompensas futuras e plano espiritual em certos indivíduos também se deve às lembranças dos períodos entre as encarnações, em seu “estado de Espírito”,[8] [9]quando podiam compreendê-los de forma mais lúcida. Essa intuição, quando estimulada pela razão e pelas experiências durante a encarnação, torna mais fácil a apreensão dos postulados espíritas, por exemplo.[10]
Também as experiências em momentos de emancipação da alma durante o sono físico, ou em episódios sonambúlicos e extáticos, podem emergir em estado de vigília na forma de intuição. Por exemplo, ao discutir a possibilidade de reuniões entre Espíritos durante o sono, Kardec aponta que “ao despertar, guardamos intuição das ideias que haurimos nessas conversas ocultas, embora lhe ignoremos a fonte.”[11]
Da mesma forma, devido à presença latente de certas impressões do passado enquanto “tendências instintivas”, é possível que o encarnado tenha certa noção de suas dificuldades morais já manifestadas em vidas anteriores, mesmo que não possa precisá-las. Ademais, essa vaga lembrança pode ser atribuída à ação de um Espírito amigo, o qual, “dado por guia nessa outra existência, procurará levá-lo a reparar suas faltas, dando-lhe uma espécie de intuição das que ele cometeu”,[12] o que abordaremos com mais detalhe à frente.
Um segundo importante sentido dado à intuição é o que a relaciona a pressentimento ou noção do futuro. Como aponta Kardec, em referência à tradição judaica, “deu-se o caso de haver profetas que tiveram a presciência do futuro, quer por intuição, quer por revelação providencial, a fim de transmitirem avisos aos homens”,[13] o que já revela seu entendimento nessa direção. Um assunto recorrente em O Livro dos Espíritos, e que bem exemplifica essa questão, é o pressentimento da hora da morte. Segundo os Espíritos, é possível pressenti-la devido ao conhecimento prévio que o indivíduo tem de seu planejamento reencarnatório, logo pode ter “plena consciência dessa época, o que lhe dá, no estado de vigília, a sua intuição.”[14] Contudo, é também possível que esse pressentimento venha “de seus Espíritos protetores, que assim o advertem para que esteja pronto para partir, ou lhe fortalecem a coragem nos momentos em que ela se torna mais necessária”,[15] o que também destacaremos adiante.
Em relação a outros tipos de pressentimento, a explicação é a mesma. Além da situação apontada no segundo parágrafo, duas são as possibilidades: “é o conselho íntimo e oculto de um Espírito que vos quer bem. Também está na intuição da escolha que se haja feito. É a voz do instinto. Antes de encarnar, o Espírito tem conhecimento das fases principais de sua existência, isto é, do gênero de provas com as quais se compromete.”[16]
Até o momento, destacamos significados que remetem, principalmente, a questões anímicas. Ou seja, a intuição seria fruto, em um primeiro momento, de capacidades intelectuais ou lembranças dos próprios Espíritos. Contudo, tanto no que se refere à memória do passado, quanto ao que remete aos pressentimentos, vimos que a ação de outros Espíritos pode se fazer presente, o que nos encaminha ao último sentido do termo, que apresenta intuição como influência dos Espíritos, relacionada à mediunidade. A famosa questão 459 de O Livro dos Espíritos abre a discussão sobre o tema, afinal, em sua resposta, os Espíritos nos informam que influem em nossos pensamentos muitos mais do que imaginamos. As questões que a seguem deixam ainda mais clara essa possibilidade de ação, ou seja, que a intuição pode ser fruto de contribuições externas.[17]
A associação mais clara de intuição à mediunidade aparece na descrição dos médiuns intuitivos. Ao tratar especificamente da psicografia, Kardec apresenta, inicialmente, os médiuns mecânicos, ou seja, os que psicografam passivamente, sem a menor consciência do que escrevem, o que demonstra uma ação mais direta do Espírito comunicante. Contudo, há também comunicações em que a ação do Espírito é mais sutil, quando “o papel da alma [do médium] não é inteiramente passivo; é ela quem recebe o pensamento do Espírito comunicante e o transmite.” Com plena consciência do que escreve, o médium intuitivo exprime voluntariamente um pensamento que não é seu (uma situação intermediária é a do médium semimecânico).[18] Importante é salientar que, também entre os médiuns falantes ou psicofônicos, Kardec observa essas três possibilidades.[19] Logo, concordamos com a conclusão de que “a intuição não constitui, em si, uma faculdade mediúnica específica, mas uma forma de a mediunidade se expressar.”[20]
O trabalho do médium intuitivo é semelhante ao de um intérprete, logo, “para transmitir o pensamento, precisa compreendê-lo e, de certo modo, apropriar-se dele, para traduzi-lo fielmente.”[21] Como aponta o Codificador, esses médiuns são “muito sujeitos a erro”[22] e sua produção mediúnica é menos precisa, o que nem sempre é um problema.[23] Distinguir o próprio pensamento do pensamento do Espírito comunicante pode ser tarefa difícil, porém, quando a ideia intuída não é preconcebida, mas difere das próprias concepções do médium ou mesmo supera seus conhecimentos, a ação de uma outra inteligência se torna mais provável.[24]
Para além da psicofonia e da psicografia, uma variedade da mediunidade intuitiva é a mediunidade inspirada. O médium inspirado pode perceber pelo pensamento, mesmo em estado de vigília, “comunicações estranhas às suas ideias preconcebidas”, ainda que por uma intervenção muito mais sutil, menos sensível, o que dificulta ainda mais a distinção entre os próprios pensamentos e os que lhe são sugeridos. Se a inspiração pode auxiliar os grandes gênios de todas as áreas do conhecimento, está também nos episódios cotidianos, relacionada às “mais corriqueiras circunstâncias da vida”[25] e, naturalmente, no próprio trabalho mediúnico.
Por fim, uma variedade dos médiuns inspirados e, naturalmente, dos médiuns intuitivos, são os médiuns de pressentimentos. Como já apontado, ainda que os pressentimentos possam derivar de intuições do próprio Espírito, podem ser também resultado de “comunicações ocultas, e é principalmente neste caso que se pode dar aos que dela são dotados o nome de médiuns de pressentimentos.”[26] [27]
Concluindo, destacamos:
- Nem toda intuição, enquanto mecanismo de compreensão, lembrança do passado ou projeção do futuro, tem origem mediúnica;
- Toda intuição, inspiração ou pressentimento, ainda que de caráter mediúnico, necessita de análise crítica, ou seja, como qualquer faculdade mediúnica, não tem o caráter de “poder” infalível;
- No estudo espírita é possível identificar palavras com múltiplos significados, logo, na busca de um entendimento mais profundo dos conceitos, é importante uma consulta mais detalhada.
[1] KOOGAN, Abrahão; HOUAISS, Antônio. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1994.
[2] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 2, i. 35.
[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2. p., c. 15, i. 184.
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 454.
[5] Idem, q. 218.
[6] Idem, q. 219.
[7] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 3, q. 118.
[8] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 220, 221, 329, 613, 621, 626 e 962.
[9] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Rio de Janeiro: FEB, 2009, 1. p., c. 2, i. 1 e c. 4, i. 1.
[10] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 1. p., c. 1, i. 26.
[11] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 417.
[12] Idem, q. 393 e 399.
[13] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 21, i. 4.
[14] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 411 e 857.
[15] Idem, q. 857.
[16] Idem, q. 522.
[17] Idem, q. 459 a 480 e 545.
[18] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2. p., c. 15, i. 179 a 181 e c. 16, i. 191.
[19] Idem, 2. p., c. 14, i. 166.
[20] MOURA, Marta Antunes O.(org.). Mediunidade: estudo e prática. Programa 2. Brasília: FEB, 2015, m. II, t. 6, p. 129.
[21] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2. p., c. 15, i. 180.
[22] Idem, 2. p., c. 16, i. 191.
[23] Idem, 2. p., c. 19, i. 223.
[24] Idem, 2. p., c. 15, i. 180 e c. 17, i. 214.
[25] Idem, 2. p., c. 15, i. 182 e 183.
[26] Idem, 2. p., c. 15, i. 184.
[27] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 16.