Discussões político-ideológicas no Movimento Espírita

Texto extraído e adaptado de entrevista dada pelo autor à revista Reformador, da FEB, em abril de 2021.

Daniel Salomão

Dado o clima de polarização político-ideológica atual em nosso país, é natural que temas relacionados a isso sejam discutidos também entre espíritas. Todavia, a forma como essas discussões têm ocorrido, bem como a prioridade dada a ativismos de variados teores sobre as bases espíritas, em discursos e exposições doutrinárias, merecem uma reflexão. Neste texto, vamos abordar a forma que entendemos como mais adequada às abordagens político-ideológicas no âmbito do movimento espírita.

Em primeiro lugar, sem jamais deixar de lado os importantes temas atuais, como os relacionados à política e aos costumes, entendemos como urgente a tarefa de trazer de volta as bases espíritas às nossas posturas pessoais, como também a todos os trabalhos dos nossos centros espíritas, como os de exposição doutrinária e evangelização infantojuvenil. Afinal, os postulados espíritas são plenamente compatíveis com as demandas mais recentes, desde que abordadas sob o ponto de vista do Espírito imortal. Ademais, entendemos como fundamental a compreensão dos objetivos do trabalho espírita. Segundo o Codificador, “o fim do Espiritismo é melhorar aqueles que o compreendem”[1], ou seja, apresentar, de forma compreensível, ferramentas que permitam ao indivíduo sua modificação íntima. É também “chamamento aos verdadeiros princípios da lei de Deus e consolação pela fé e pela esperança”[2], realizando o que Jesus disse do Consolador Prometido. Atentos a esses preceitos, temos plenas condições de realizar um bom trabalho de divulgação espírita.

Segundo Allan Kardec, “o objetivo da sociedade [centro espírita] é o estudo da ciência espírita, principalmente no que concerne a sua aplicação à moral e ao conhecimento do mundo invisível. As questões políticas e de economia social lhe são interditas, bem como as controvérsias religiosas.”[3] Sem desconsiderar as diferenças entres os centros espíritas de hoje e os que se constituíram à época de Kardec, compreendemos ser essa afirmação de grande atualidade. Isso não quer dizer que espíritas não podem discutir ou se envolver em política, mas que, na divulgação espírita, particularmente nas instituições espíritas, discussões de propostas ou pontos de vista político-partidários não são adequados. Se parte de nossa sociedade tem se exaltado em torno de discussões políticas, econômicas e religiosas, naturalmente respeitáveis, entendemos que a contribuição do Espiritismo não se dá diretamente nesse nível, mas mais profundamente.

Para o Codificador, a Doutrina Espírita oferece “solução possível e racional de uma porção de fenômenos morais e antropológicos”, a partir de “ensinamentos úteis, quanto à linha de conduta mais conforme à sã moral.”[4] Desses ensinamentos, os espíritas, em sua individualidade e liberdade de consciência, retirarão as bases para apoiar uma ou outra política social ou econômica, pensamentos e políticos de “direita” ou “esquerda”, liberais ou conservadores. Para o espírita, a contribuição de ciências como Direito, Economia e Sociologia é importante, mas não cabe ao centro espírita aprofundá-las e, sim, aos indivíduos buscá-las para fundamentar suas posições pessoais.

Ainda segundo Kardec, “em suas instruções, os Espíritos superiores têm sempre o objetivo de despertar nos homens o amor do bem pela prática dos preceitos evangélicos.”[5] Somos convidados a aplicá-los em nossas ações e decisões, também políticas. Para que não haja dúvidas sobre o que estamos querendo dizer, nosso entendimento não é o de que sejam vetadas aos espíritas reuniões ou manifestações públicas, individual ou conjuntamente, identificando-se ou não como espíritas, em prol de determinada ideologia, mas que não façam isso em nome do Espiritismo, ou como se fosse uma posição espírita, ou como se fosse a posição universal dos espíritas.

Temas vinculados a debates ideológicos como racismo, desigualdade social e sexualidade têm se destacado e devem ser debatidos nos centros espíritas, entretanto, a partir dos postulados espíritas, sempre em diálogo com posições sérias e não oriundas do Espiritismo, ainda que contrárias. Para a discussão dos temas citados acima, é fundamental começar por nossos pilares, como a imortalidade da alma e a reencarnação, que destacam nossa existência imortal, realçam o caráter pedagógico de nossas experiências e nos convidam à ação respeitosa perante o outro. Por exemplo, sobre desigualdade social, O Livro dos Espíritos reúne várias questões.

Quando perguntados sobre o motivo da falta de meios de subsistência a alguns indivíduos, ainda que cercados pela abundância, os Espíritos apontam o “egoísmo dos homens” e a responsabilidade da própria pessoa como causas possíveis.[6] Todavia, em outros trechos, claramente atribuem também à organização social a incumbência de solucionar esse problema.[7] Logo, pensamentos reducionistas que localizem apenas na sociedade ou apenas no próprio indivíduo a responsabilidade por suas dificuldades sociais não se alinham à proposta espírita: indivíduo e sociedade devem ser sempre considerados! Além disso, é dever de caridade nos preocuparmos em auxiliar quem quer que sofra, independentemente das causas. Nesse ponto, todos os espíritas concordam, contudo, não vamos encontrar no Espiritismo receitas prontas de políticas sociais, que naturalmente brotarão de discussões sérias em seus círculos acadêmicos e políticos. Encontramos, sim, a ética cristã, que, aliada às nossas pesquisas pessoais ou conjuntas em outras áreas do conhecimento, fundamentará nossas posições.

Para exemplificar, as obras básicas espíritas, bem como as subsidiárias mais consensuais, não nos dirão se a política de cotas raciais em universidades é a melhor solução para a mitigação do racismo ou da desigualdade racial, ou se o valor atual de algum auxílio governamental é alto ou baixo, ou se privatizar empresas públicas é bom ou ruim, ou se o julgamento de algum político foi correto ou não, ou se a flexibilização de regras quanto à posse e ao porte de armas de fogo aumenta ou reduz a violência pública, ou se a legalização das drogas é melhor ou pior para a sociedade. Conclusões como essas demandam pesquisas e elaborações que estão fora do escopo espírita. Além disso, os espíritas não têm que pensar da mesma forma, porém, todos nós concordamos que as desigualdades racial e social devem ser eliminadas, que a corrupção política não deve ocorrer, que a violência não pode prosperar em uma sociedade cristã e que corpo e Espírito merecem todo o cuidado. Contudo, os meios – que também devem estar alinhados à ética cristã – para esses fins são diversos.

O problema ocorre quando, no centro espírita, partimos de ideologias não espíritas, com as quais livremente simpatizamos, e, irrefletidamente, enquadramos nelas os postulados espíritas, como fazia Procusto, famoso personagem da mitologia grega, com os viajantes que capturava. Isso tem ocorrido com frequência em discussões espíritas sobre sexualidade, por exemplo.

Allan Kardec nos alerta que o Espiritismo “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia.”[8] Logo, antes de importar qualquer conclusão recente ou carente de consenso acadêmico, devemos aguardar com responsabilidade e paciência. Da mesma forma, antes da concordância dos Espíritos em torno de uma instrução geral, não podemos assumi-la como segura apenas porque nos agrada, como alerta o Codificador: é ainda a posição de uma individualidade.[9] Mais seguro que afirmar como posição espírita determinado ponto de vista não consensual é reconhecer humildemente nosso provisório desconhecimento, por ainda carecermos de base científica e/ou doutrinária. No momento, consensuais são o imperativo do amor ao próximo e o entendimento de que, Espíritos imortais que somos, não podemos ser reduzidos simplesmente à nossa vivência sexual em determinada existência física, nem nos reduzirmos a esse aspecto. Enfim, para debater esses temas no centro espírita, são fundamentais o estudo doutrinário contínuo, a responsabilidade em se calar diante do que não é informação segura e o compromisso real com o Espiritismo, acima de nossas posições pessoais e da moda.

Por fim, importante é refletirmos sobre a forma como temos discutido todos esses temas, mesmo que fora do centro espírita. Em um breve acesso à nossas redes sociais, é fácil observar posturas não cristãs na defesa de pontos de vista políticos, por exemplo, mesmo entre trabalhadores espíritas. Ainda que devamos sempre respeitar as posições individuais, entendemos como fundamental uma revisão de posturas por parte dos que se consideram espíritas. Devemos buscar conformar nossos atos e palavras à máxima “não façais aos outros o que não gostaríeis que vos fizessem”, logo, tendo a caridade por guia.[10]

O Espírito Emmanuel, em texto que frequentemente tem sido interpretado equivocadamente como convite à inação, recomenda-nos a colaboração “com a governança humana, oferecendo-lhe o nosso concurso em trabalho e boa-vontade, conscientes de que desatenção ou revolta não nos resolvem os problemas.”[11] Logo, se devemos estar atentos e agir de forma crítica perante o que contraria nossos princípios, a revolta é sempre improdutiva. Diante da discordância, seja do poder público ou dos que o apoiam ou criticam, “a exemplo de Jesus, ensinai pela persuasão e pela brandura, e não pela força, o que seria pior do que a crença daquele a quem desejaríeis convencer.”[12] A proposta espírita para o indivíduo não é de inércia perante o que o incomoda, nem de distanciamento da política e de temas que importem à sociedade, mas de uma ação, antes de tudo, comprometida com a moral cristã.

Destacamos ainda um segundo fator importante: a certeza imatura de que nossa razão é inquestionável, ou seja, de que os que discordam de nós só podem ser pessoas “más” ou “ignorantes”. Este é outro fator problemático. Emmanuel, em outra feliz consideração, recomenda-nos o desapego das “verdades provisórias”, que muitas vezes elegemos como bandeira. Segundo ele, “muitos, em política, filosofia, ciência e religião, se afeiçoam a certos ângulos da verdade e transformam a própria vida numa trincheira de luta desesperada, a pretexto de defendê-la, quando não passam de prisioneiros do ‘ponto de vista’”. Todavia, “a verdade libertadora é aquela que conhecemos na atividade incessante do eterno bem.”[13] Se a prática da caridade é essa perene verdade que liberta, não consideramos coerente deixá-la de lado na defesa do que é provisório.


[1] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano II: 1859. Catanduva: EDICEL, 2017, p. 215 [julho].

[2] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, p. 152 [cap. 6, i. 4].

[3] KARDEC, Allan. Viagem espírita em 1862 e outras viagens de Kardec. Rio de Janeiro: FEB, 2005, p. 142 [Projeto de regulamento para uso dos grupos e pequenas sociedades espíritas].

[4] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano I: 1858. Catanduva: EDICEL, 2017, p. 15 e 16 [janeiro].

[5] Idem.

[6] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, p. 443 [q. 707].

[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, pp. 433 e 564 [q. 930 e nota da questão 685a].

[8] KARDEC, Allan. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009, p. 59 [c. 1, i. 55].

[9] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.  Rio de Janeiro: FEB, 2010, pp. 28 a 30 [introdução, II].

[10] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.  Rio de Janeiro: FEB, 2010, p. 252 [c. 12, i. 15].

[11] XAVIER, Francisco Cândido. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 29a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2009, p. 220 [c. 102].

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, p. 506 [q. 841].

[13] XAVIER, Francisco Cândido. Fonte viva. Pelo Espírito Emmanuel. 23a ed., Rio de Janeiro: FEB, 1999, p. 385 [c. 173].

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