A produçao do conhecimento no Espiritismo

André Luiz Peixinho

O nascimento do Espiritismo inaugura um novo período na gênese do conhecimento humano pela utilização do método dialógico e interexistencial, influenciado pela marca do Positivismo dominante. Esta atitude gnosiológica[1] faz de Kardec o pioneiro da integração do Espírito na história da produção do conhecimento. Mais que isso, inaugura a fase dos estudos científicos multicêntricos na investigação de realidades, até então restritas ao domínio da fé ou da reflexão filosófica. Como decorrência, surgem uma sociologia interexistencial, uma antropologia humana do ser integral, uma psicologia palingenésica[2] e dos estados alterados da consciência, em especial, da mediunidade, e uma teoria evolucionista dos valores. Emerge, então, uma compreensão mais ampla da ética cristã, tendo os ensinos do Evangelho uma interpretação congruente com as noções fundamentais da condição de ser Espírito.

Destaque maior merece a proposição inicial espírita de superar a fragmentação do conhecimento vigente. Vale recordar que, em meados do século XIX, o conhecimento científico se tornara hegemônico. O modelo de Auguste Comte, bem aceito à época, hierarquizava o saber, estabelecendo que a tradição religiosa seria a infância da humanidade, a filosofia corresponderia à adolescência, e a ciência, enfim, seria a fase adulta do conhecimento. As duas primeiras formulações teriam preparado o advento da última e, como tal, deveriam ser superadas à semelhança do que ocorre no desenvolvimento biológico. Assim se institucionalizava a redução do mundo cognoscível,[3] que é percebido pelos sentidos, e a matéria passava à condição de estruturante do universo físico, social e conceptual.

A filosofia do Espírito, que encontrou em Hegel seu último grande expoente, foi combatida e, em seu lugar, emergiu o materialismo histórico e dialético. É nesta efervescência cultural que os Espíritos fazem uma verdadeira invasão na Europa e na América. Kardec propõe uma nova concepção, demonstrando a necessidade do Espírito e de sua integração com a matéria, numa viagem evolutiva em que cada vez mais a manifestação da dimensão espiritual ganha significado e valor. Ressalta então a necessidade de reconhecer-se cada saber como representação de uma possibilidade de entendimento de um universo muito mais complexo que o descrito pela ciência. Assim, emerge dos escritos do codificador espírita a aliança da ciência com a religião, intermediada por um pensar filosófico. Mais tarde, seu mais completo discípulo, Léon Denis, enfatizará as diferentes possibilidades do conhecimento através dos sentidos, da razão e da intuição, preludiando a integração das funções psíquicas do ser, ideias que foram desenvolvidas nas correntes analíticas e transpessoal da psicologia.

Denis ainda redimensiona o valor da arte e a coloca como uma modalidade de conhecimento e fonte fecunda de informação e desenvolvimento do psiquismo. Em nossa análise, Kardec e Denis se alinham numa retrospectiva epistemológica,[4] como pioneiros da integração do saber ou da transdisciplinaridade. Estariam hoje na vanguarda da compreensão dos problemas da civilização globalizada, que assiste a decadência do modelo cientificista centrado na matéria. Eles enfrentaram o dilema fé versus razão, oferecendo uma solução dialética, evolucionista e espiritual do problema, dando a devida relevância a cada uma delas no âmbito da produção do saber. Basta recordar o aforismo que afirma: “fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.” [5]

Na atualidade, precisamos resgatar o modelo iniciado por Kardec. Como advertem alguns Espíritos, é importante reunir companheiros que preferem a pesquisa consciente, metódica, sistemática e racional, facultando aprofundar observações em termos compatíveis com a metodologia transdisciplinar emergente da contemporaneidade. Isso exige paciência, cultura, sintonia fina com Espíritos elevados, médiuns bem qualificados para este tipo de labor, além de técnicas apropriadas de investigação psíquica. Significa também investimento na construção do conhecimento, baseado na universalidade do ensino dos Espíritos e na análise racional de suas informações, bom senso e consenso, novamente adotados como indicadores de validade do saber.  

O conhecimento espírita, conquanto bem sedimentado, é progressivo e, em certa medida, propõe uma revolução paradigmática. Isso resulta numa mundividência emergente com consequências práticas na sociedade. A superação do materialismo, como acentuava Kardec, remodelará as relações humanas, as instituições sociais, o significado da vida e os parâmetros éticos. Mas isso só se dará se tivermos uma gama de informações, pessoas e organizações capazes de demonstrar vantagens de uma interpretação espírita da realidade em linguagem contemporânea.

Essa é uma tarefa que aguarda lidadores espíritas dedicados, trabalhando em uma rede de produção de conhecimento com uma clara visão do papel espírita na renovação da postura humana frente à produção do saber.

O pesquisador espírita, entretanto, mais que outros, precisa estar atento ao fato de que sua própria evolução define sua capacidade de investigação. Daí porque é fundamental que, paralelo a este trabalho, desenvolva um exercício proficiente de autoconhecimento e individuação. Esta me parece uma área bastante incipiente no movimento espírita, motivo de análise em outra oportunidade.


[1] Relativa à forma de se obter conhecimento.

[2] Que considera a realidade da reencarnação.

[3] Que se pode conhecer.

[4] Relativa à forma de se obter conhecimento.

[5] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 19, i. 7.

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