Kardec antes de Kardec: Rivail e as questões materiais

Coluna Com Afeto, Kardec

Fábio Fortes

Quem é Allan Kardec? Que passos, obstáculos e surpresas encontrou ao longo de sua missão de Codificador da Doutrina Espírita? Que relação manteve com familiares, colaboradores, detratores?  O conjunto de cartas e documentos pessoais que foram recentemente publicados pelo Projeto Allan Kardec (www.projetokardec.ufjf.br), uma parceria entre a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) e o Allan Kardec On-line (AKOL), dá notícias inéditas da personalidade, da vida e do trabalho doutrinário do Codificador. Nessa série de pequenos comentários, publicada na revista O Médium, propomos descobrir novas perspectivas para compreender os gestos e os passos desse grande Espírito. Nesse quarto artigo, teceremos algumas considerações sobre a personalidade e os desafios de Rivail, o dedicado professor francês.

É um capítulo ainda não muito esclarecido, por vezes cercado de mistério, idealização e imprecisão, os passos que antecederam o momento quando, pela primeira vez, o mestre-escola francês Hippolyte Léon Denizard Rivail assinou uma obra usando o pseudônimo Allan Kardec, vindo a se tornar, então, peça-chave para o empreendimento da Doutrina dos Espíritos.

Embora existam algumas boas biografias de Kardec[1] e vários estudos historiográficos que, pouco a pouco, lançam luz sobre a vida desse Espírito notável,[2] as cartas de cunho pessoal entre Kardec, Amélie Boudet e seus familiares, já disponíveis no Projeto Allan Kardec, e que datam dos anos que antecedem o advento da Doutrina Espírita, oferecem ao leitor contemporâneo ângulos da vida particular de Kardec que nem sempre foram capturados pelas biografias oficiais.

Qual é importância desses elementos privados, o leitor se perguntará, para a reflexão espírita? Afinal, se seguirmos o aconselhamento dos próprios Espíritos, tal qual aquele refletido em O Livro dos Médiuns (2a p., c. 24), devemos conceder que o nome, o renome ou mesmo a biografia atribuída a um Espírito é de menor importância perante a mensagem de que ele se faz porta-voz, de modo que, não sem razão, poderíamos admitir que, à primeira vista, a experiência biográfica de Kardec não teria grande importância. “À primeira vista”, porém.

Visto com mais profundidade, os documentos pessoais de Kardec em sua juventude representam notáveis exemplos de conduta, trabalho, esperança, confiança e religiosidade – no sentido mais elevado do termo – e tornam patente que Kardec, nos anos que precederam o trabalho espírita, enfrentou com dignidade também os desafios da vida comum: a preocupação com o ganha-pão – em um contexto social nem sempre favorável –, os cuidados com a família, a atenção com sua saúde física. Nesse conjunto de cartas,[3] somos testemunhas de que o professor Rivail, que manteria durante certo período uma instituição privada de ensino em Paris, se ocupou, em várias ocasiões, com o trabalho de divulgação, obtenção de apoio e financiamento para os seus negócios familiares, muitas vezes às custas de constantes afastamentos de sua família e mesmo em detrimento de sua saúde.

Em carta de outubro de 1834, dirigida a Amélie, Rivail descreve um encontro com o prefeito de Bourg, para tratar de seus assuntos de trabalho, e, ao mesmo tempo, revela ter atravessado problemas de saúde: “Minha saúde está bem restabelecida; minhas forças estão inteiramente recuperadas, bem como o apetite; no entanto, devo ainda ter cautela com este último. Sem isso, sinto desconforto”. Na sequência, destaca a saudade que sentia da tranquilidade de sua vida familiar em Paris: “Tu [não] irias acreditar no quanto sofro por me sentir há tanto tempo ausente de Paris; gostaria de ver voar a diligência, mas me foi impossível fazer melhor.”

Em missiva de 1837, encontramos o professor Rivail em uma de suas viagens internacionais. O professor escreve de Londres, onde teria ido fazer a divulgação de seu internato em Paris, na esperança de obter novos alunos. A carta é um misto de preocupação com os parcos recursos de que o jovem professor dispunha para essa tarefa, esperança de auferir um bom resultado com aquele esforço e pesar por não poder estar com a esposa. As grandes dificuldades encontradas e o modesto avanço obtido podem ser inferidos de comentários que Rivail tece a Amélie, como, por exemplo, ao dizer que: “Quanto a mim, não faço grandes negócios aqui; no entanto, acho que minha viagem não será inútil; meus anúncios me trouxeram até agora somente um pedido, e ainda por carta.” No entanto, fica patente também a esperança, a perseverança e a incansável dedicação:

Escrevi a um dos meus amigos, que mora nos arredores e que tem um liceu com grande reputação; assim que recebeu minha carta, ele se dispôs a vir a Londres para me ver e me convidar para ir à sua casa. Eu o vi somente hoje, e na quinta-feira à noite vou visitá-lo. Por sua posição, ele pode ser muito útil para mim, e tenho esperanças quanto a isso (…). Se não fossem as despesas, eu iria à sua casa.

Nessa mesma carta, Rivail busca atender à curiosidade de Amélie, que havia reclamado por ele não lhe ter dado detalhes sobre aquela famosa cidade inglesa:

Tu me censuras por não ter feito a descrição da entrada de Londres e de suas incontáveis embarcações. Sabes primeiramente que sou muito preguiçoso para escrever cartas e que economizo habitualmente minha pena para tudo o que não é necessário; pensei que uma narração ao vivo seria mais interessante. Por isso, vou me limitar ainda desta vez a te dizer que, desde a entrada do Tâmisa até Londres, vi entre 4 e 5 mil navios pelo menos, e dificilmente se pode, quando não se viu, fazer uma ideia dessa imensa floresta de mastros.

Com suas economias, Rivail também não deixou de passear um pouco por Londres: “Quanto às atrações, não custam tanto quanto se dizia. Visitei Westminster, que realmente merece ser vista, por 36 sous. Para ver a torre, não custa mais do que 3,75 francos.”

Em um par de cartas datadas de 1842, somos informados de mais uma viagem de Kardec para o estrangeiro. Nessa ocasião, trata-se de negócios em Aix-la-Chapelle, na Alemanha. Somos informados de um inusitado fato: saindo apressado, para não perder a condução disponível à época (movida por tração animal, um transporte penoso e desconfortável), Rivail teria deixado o seu chapéu, e, na pressa, não pôde sequer se despedir de Amélie. Caberia a Amélie remeter o chapéu para a Alemanha, mas a Rivail não passou em silêncio o pesar de não ter podido encontrar-se com a esposa e dela se despedir antes da partida:

Antes de entrar, olhei para todos os lados para ver se te avistava, mas não vendo ninguém, precisei subir (…). Tu podes supor que, ainda que eu estivesse contrariado por não ter comigo a minha caixa de chapéu, essa não foi a minha maior tristeza; eu teria deixado para trás, com prazer, todos os chapéus do mundo para poder te abraçar antes da minha partida.

Os testemunhos pessoais de Rivail mostram-nos as preocupações materiais do professor, sempre engajado em ver prosperar suas iniciativas educacionais em Paris, mas não menos comprometido com os valores que elas representam. Assim, para além das questões materiais que emergem, as cartas de Rivail mostram que a régua ética que o conduzia em suas ocupações materiais não se distanciava nem em um centímetro daquela pela qual seria pautado, anos mais tarde, o seu trabalho como Codificador da Doutrina Espírita.

Os testemunhos de Rivail mostram que as qualidades espirituais do Kardec de maturidade já se encontravam nas ações do jovem Rivail. Para nós, isso é uma demonstração eloquente de que o Espiritismo não é uma doutrina teórica, desapegada da vida, mas é uma proposta para conduzir os nossos atos em todas as circunstâncias da nossa existência.


[1] Como, por exemplo, aquela publicada pela FEB, de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (Allan Kardec: o educador e o codificador. Rio de Janeiro: FEB, 2004. v. 1, publicada originalmente em 1973) e, a mais recente, de autoria do jornalista Marcelo Souto Maior (Kardec, a biografia, Rio de Janeiro, Record, 2019).

[2] Para citar um exemplo, a tese de doutorado: de Anderson Claytom Ferreira Brettas. Hippolyte Leon Denizard Rivail, ou Allan Kardec: um professor pestalozziano na França do tempo das revoluções. 2013. Tese (doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Uberlândia, bem como a dissertação de Marcelo Gulão Pimentel. O método de Allan Kardec para investigação dos fenômenos mediúnicos (1854-1869). 2014. Dissertação (mestrado em Programa de Pós-graduação em Saúde Brasileira) – Universidade Federal de Juiz de Fora.

[3] Cartas citadas: Carta de Hippolyte Rivail para Amélie Boudet. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=159; Carta de Hippolyte Rivail para Amélie Boudet. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=160; Carta de Hippolyte Rivail para Amélie Boudet. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=164. Acesso em: 22 Ago 2021. Projeto Allan Kardec.

Você pode gostar...

2 Resultados

  1. MARCIAL DA SILVA FERNANDES disse:

    Sugiro oferecer também a opção de mudança para um contraste maior como o fundo escuro e as fontes brancas. Descansa as vistas e fica mais fácil de ler.

  2. SOU FALSO ESPÍRITA DE CORPO E ALMA. UM DIA… QUEM SABE… SEREI ESPÍRITA VERDADEIRO DE CORPO E ALMA. JESUS DE NAZARÉ E TAMBÉM KARDEC FAZEM MEU CORAÇÃO VIBRAR EM PENSAMENTOS ALTAMENTE POSITIVOS, ACREDITEM!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *