“Revista Espírita” em destaque: Tolerância e seus diferentes conceitos

Ricardo Baesso de Oliveira

Virtudes e defeitos são pensamentos, sentimentos e atitudes humanas que interferem no bem-estar de outras pessoas. Qualificamos de virtudes as ações que interferem positivamente no bem-estar alheio, aliviando a dor, aumentando a alegria, contribuindo na solução de seus problemas. Os defeitos, imperfeições morais, como preferem alguns, por sua vez, são as ações humanas que interferem negativamente no bem-estar de terceiros, aumentando sua dor, reduzindo sua alegria, desconsiderando seus direitos.

Para melhor estudá-los, necessitamos nomeá-los e caracterizá-los. Algumas virtudes e alguns defeitos são relacionados a conceitos diferentes, o que dificulta, às vezes, a compreensão de cada um deles. Tolerância é uma dessas virtudes que vem sendo conceituada de diferentes formas. Vamos, neste texto, apresentar algumas dessas conceituações.

Do ponto de vista sociológico e segundo a maior parte das definições encontradas nos dicionários, a tolerância é entendida como a convivência sadia com o diferente. A palavra tolerância deriva do latim tolerare ou tolerantia, que quer dizer “aceitar” ou “suportar”. Assim, a tolerância tem a ver com aceitar naturalmente as diferenças, sejam elas físicas (cor de pele, nacionalidade, tipologia física), ideológicas (convicções políticas), comportamentais (gênero, orientação sexual, modo de vida) ou de qualquer outra natureza. Ser tolerante exige ter uma mente aberta, despida de preconceitos e julgamentos. A partir da tolerância, é garantida a aceitação de diferenças sociais e a liberdade de expressão.

Segundo André Comte-Sponville[1], a perspectiva filosófica de tolerância é mais restritiva, pois só se coloca nas questões de opinião e de crença. Tolerar é aceitar o que poderia ser condenado e não fazer o que poderia impedir ou combater. Portanto, é renunciar a uma parte de seu poder, de sua força, de sua cólera… Assim, toleramos os caprichos de uma criança ou as posições de um adversário. Podemos não aceitar que a Bíblia tenha sido ditada diretamente por Deus, mas aceitamos que outros pensem e vivam segundo essa crença. Isso é tolerar: a virtude que se opõe ao fanatismo, ao sectarismo e ao autoritarismo.

Essa proposta conceitual de tolerância parece se identificar com o posicionamento de Kardec. Em diferentes textos da Revista Espírita, o Codificador reporta-se à tolerância como algo relativo às crenças e opiniões, chegando a escrever que o Espiritismo se gloria de uma tolerância absoluta.[2] Em um trecho do livro A Gênese, encontramos o verbete se referindo à “tolerância para com todas as crenças.”[3]

Um aspecto importante ressaltado por Sponville: a tolerância não é uma atitude passiva, de indiferença ou omissão. Pelo contrário, quando toleramos algo, somos responsáveis pelas possíveis consequências daquilo que toleramos. Daí se conclui que nem tudo é para ser tolerado. Não se pode tolerar o erro. O erro é para ser corrigido. Quando a verdade é conhecida com certeza, a tolerância não tem objeto.

Tolerar o sofrimento dos outros quando este pode ser evitado, as desigualdades sociais, a injustiça de que alguém é vítima é egoísmo, é indiferença. Tolerar Hitler era tornar-se seu cúmplice, pelo menos por omissão, e essa tolerância já era colaboração. Não podemos tolerar qualquer coisa que ofereça periculosidade efetiva à liberdade, à justiça e à solidariedade. Segundo essa visão, a tolerância é essencialmente limitada. Uma tolerância infinita seria o fim da tolerância, pois os intolerantes poderiam agir livremente e destruir a própria tolerância.

E, finalmente, uma terceira definição de tolerância: aquela que a define como o ato de desculpar as imperfeições, faltas, erros, ou mesmo a ignorância e a desinformação. Essa é a maneira como Emmanuel entende a tolerância: “tolerar é, acima de tudo, completo esquecimento de todo o mal, com serviço incessante no bem, olvidar a sombra, buscando a luz”.[4] Aqui, tolerância e perdão são conceitos equivalentes e se identificam também com a proposta de indulgência como “o sentimento doce e fraternal que não vê os defeitos dos outros, ou, se o vê, evita falar deles, divulgá-los”.[5]Tolerar, nessa abordagem, é cessar de odiar. É a virtude que triunfa sobre o ressentimento, sobre o julgamento dos atos alheios, sobre a condenação explícita do mal proceder, sobre o rancor e sobre o desejo de vingança. Perdoar é cessar de ter raiva de quem nos magoou e, consequentemente, isso nos libertará de um vínculo negativo com a fonte que transgrediu contra nós.

O Espírito Joanna de Ângelis parece seguir nessa mesma linha ao relacionar a tolerância com “a questão do julgamento das faltas alheias”.[6]Em outro texto, se refere à “tolerância para com aqueles que se encontram nos patamares inferiores do processo de crescimento moral” e comenta que a “tolerância real é conquista valiosa, que se transforma em degrau de progresso, porque faculta novas expressões de solidariedade, destacando-se o perdão irrestrito a todo o mal que se haja feito, com esquecimento real da ofensa”.[7]

Todavia, existe algo que está presente em todas as definições de tolerância: a compreensão e o entendimento fraterno. A tolerância é a virtude da compreensão: compreender o diferente, compreender o faltoso, compreender os que têm opiniões diferentes da nossa. Segundo Emmanuel, “pedir que os outros pensem com a nossa cabeça seria exigir que o mundo se adaptasse aos nossos caprichos, quando é nossa obrigação nos adaptarmos ao mundo com dignidade, dentro da firme disposição de ajudá-lo”.[8]

Por tudo isso, tolerar não pode ser uma postura de superioridade, como uma dádiva que prestamos a outro por aceitá-lo ou suportá-lo numa convivência que nos é dolorida; deve ser, por outro lado, respeitá-lo.

Respeito vem do latim respectus, particípio passivo do verbo respiciō, da composição de re (“novamente”) + speciō (“olhar”). Respeitar é ver de novo, ver com outros olhos, enxergar de forma diferente. Como compreensão e respeito, tolerar será, sobretudo, colocar-se no mesmo nível do outro, vê-lo como irmão, não como alguém que compete comigo, mas como alguém que divide comigo as responsabilidades coletivas.

Ao ampliarmos em nossa personalidade as diferentes conotações de tolerância, estaremos mais firmemente enriquecidos de valores que nos permitirão uma vida mais justa, mais nobre e mais bela.


[1] COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes, c. 13.

[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita, jun/1868.

[3] KARDEC, Allan. A Gênese, c. 18, i. 23.

[4] XAVIER, Francisco Cândido. Pelo Espírito Emmanuel, Pensamento e vida, c. 25.

[5] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, c. 10, i. 16.

[6] FRANCO, Divaldo P. Pelo Espírito Joanna de Ângelis, Jesus e atualidade, c. 5.

[7] FRANCO, Divaldo P. Pelo Espírito Joanna de Ângelis, Vida: desafios e soluções, c. 8.

[8] XAVIER, Francisco Cândido. Pelo Espírito Emmanuel, Pensamento e vida, c. 25.

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1 Resultado

  1. Denise disse:

    Como sempre, educando para a vida plena! Obrigada, Dr Ricardo!

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