Kardec, São Vicente de Paulo e a esmola

Ricardo Baesso de Oliveira

Tradicionalmente, considera-se esmola como uma pequena quantia de dinheiro dada a um pedinte por caridade. Talvez possa considerar-se também como esmola a doação de alimentos, roupas, remédios etc. É considerada por várias religiões como um ato caridoso feito aos necessitados. Nas religiões abraâmicas, esmolas são dadas para beneficiar os pobres e agradam a Deus. 

Allan Kardec não condenou a esmola, considerando-a como uma forma de caridade material1. Kardec acreditava que negar-se a auxiliar materialmente aqueles que precisam de nossa ajuda, podendo fazê-lo, é um ato de extremado e cruel egoísmo e solicitou, em inúmeras oportunidades, aos membros da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, donativos para socorro emergencial a vítimas de tragédias climáticas ou outras calamidades2.

O que se discute entre os espíritas são alguns aspectos vinculados à esmola, particularmente se o socorro material deve se dar de forma incondicional e indistinta – sem olhar a quem, ou se deveria acompanhar-se de um exame crítico e especial de cada situação em particular. 

Como se posicionava Allan Kardec diante desse debate? Destacamos nesse particular a mensagem “A caridade”, assinada por Vicente de Paulo e publicada na Revista Espírita de agosto 1858. No sétimo parágrafo, o autor coloca:

Quando deixardes que vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes algo, sem questionar se sua miséria não é fingida ou se seu mal provém de um vício de que deu causa; quando abandonardes toda a justiça nas mãos divinas; quando deixardes o castigo das falsas misérias ao Criador; quando, por fim, praticardes a caridade unicamente pela felicidade que ela proporciona e sem inquirir de sua utilidade, então sereis os filhos amados de Deus e ele vos atrairá a si [grifos nossos]. 

Allan Kardec, Revista Espírita, 1858

Os pensamentos grifados por nós dialogam com a postura do socorro material incondicional. Estão presentes no texto as ideias de socorrer materialmente sem questionar, sem investigar a causa, sem questionar a legitimidade do pedido, nem a sua utilidade. 

Kardec parece não haver consentido totalmente com as ideias apresentadas. Após a mensagem, o Codificador dialoga com o Espírito da seguinte forma:

Kardec: Pode-se entender a caridade de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando dissestes que era necessário que o coração se abrisse à súplica do infeliz que nos estendesse a mão, sem questionarmos se não seria fingida a sua miséria, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola? 

Vicente de Paulo: Sim; somente nesse parágrafo. 

Kardec: Dissestes que era preciso deixar à justiça de Deus a apreciação da falsa miséria. Parece-nos, entretanto, que dar sem discernimento às pessoas que não têm necessidade, ou que poderiam ganhar a vida num trabalho honesto, será estimular o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem aberta com muita facilidade a bolsa dos outros, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes. Vicente de Paulo: Podeis discernir os que podem trabalhar e, então, a caridade vos obriga a fazer tudo para lhes proporcionar trabalho; entretanto, também existem falsos pobres, capazes de simular com habilidade misérias que não possuem; é para os tais que se deve deixar a Deus toda a justiça. 

Observamos, pelo visto, que Kardec assume uma atitude contraditória ante o pensamento de Vicente de Paulo, questionando-o quanto à real validade de se prestar um socorro material àqueles que poderiam custear-se a si mesmos: “(…) dar sem discernimento poderia estimular o vício e a preguiça”. Acrescenta Kardec que “os preguiçosos multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes”. 

Fica evidente pelo texto que Vicente de Paulo reflete sobre a colocação de Kardec e faz um reparo em relação à colocação prévia: “podeis discernir os que podem trabalhar”. Para estes, o Espírito propõe, na resposta a Kardec, uma ação promotora do trabalho digno, sensibilizando-os para tal e auxiliando-os nesse cometimento.

Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec se vale da expressão “profissionais da mendicância” ao se referir àqueles indivíduos que fazem da boa vontade alheia um meio de vida, mantendo-se à margem do trabalho digno, como reais parasitas sociais3. Kardec não apregoa insensibilidade ou indiferença ante essas pessoas, mas quer mostrar que a estratégia de ajuda deve ser outra, já que atendê-los simplesmente em sua rogativa não seria a melhor forma de ajudá-los. 

Kardec admite que se deva considerar, em certas situações, a responsabilidade pessoal daqueles que vêm a mendigar, por pouco esforço, atitude exploratória ou acomodação à própria sorte, sem negar, todavia, que a sociedade também é responsável por essa condição, por não lhes haver promovido, através do esclarecimento e bom exemplo, uma identificação com os valores éticos da dignidade, responsabilidade e fraternidade humana. Lembra Kardec que “se uma boa educação moral lhes houvera ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos excessos causadores da sua perdição”4. Ao se referir aos “verdadeiros infelizes”, Kardec reconhece a necessidade de a sociedade assumir os cuidados daqueles que se encontram sem condições mínimas de arcar com os custos da própria sobrevivência material. Na falta da família, compete à sociedade. “O forte deve trabalhar para o fraco. Não tendo este família, a sociedade deve fazer as vezes desta. É a lei de caridade”5

Importante assinalar que, à época do Codificador, a previdência social, como órgão de socorro e assistência ao enfermo e idoso, não existia. Os primeiros institutos de previdência social surgiram bem depois da morte de Kardec, no final do século XIX, inicialmente na Alemanha e logo depois em outros países da Europa. Assim, os enfermos e idosos que estivessem impossibilitados de prover seu próprio sustento ficavam na dependência da caridade alheia. Não havia aposentadoria por idade ou doença, seguro de saúde, afastamento remunerado para tratamento de saúde e outros serviços sociais hoje existentes em praticamente todos os países do globo.

Concluímos lembrando que, curiosamente, Kardec publica, posteriormente, a mensagem de Vicente de Paulo, em O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo 13, item 12, suprimindo do texto o parágrafo aludido por nós.

KARDEC, Allan. Viagem espírita em 1862, “Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux III” e Revista Espírita, set/1862, “Uma reconciliação pelo Espiritismo”.

 KARDEC, Allan. Revista Espírita, fev/1862, “Subscrição em favor dos operários lioneses” e Revista Espírita, jan/1863, “Subscrição em favor dos operários de Rouen”; Revista Espírita, nov/1866, “Subscrição em favor dos inundados”.


 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, c. 13, i. 4.

 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, q. 889.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, q. 685ª.

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