Arte pura e arte terrena

Ana Paula Soares Bartholomeu

Certa vez, um famoso escritor criou, num romance, uma personagem que, caindo no gosto de jovens leitores, acabou influenciando-os de tal forma que os rapazes passaram a se vestir como o tal protagonista. E não só, infelizmente. Uma onda trágica também se verificou na realidade, por conta dos que se identificaram com a tal personagem que, na trama, deu fim à própria vida – uma ideia absolutamente imprópria, grave e ineficaz, uma vez que, em toda parte, só há vida. Com esse exemplo de emprego infeliz das ideias numa obra de arte, é fácil compreender o pensamento de outro famoso escritor, Léon Tolstói, que, compenetrado da responsabilidade que lhe cabia, assim se manifestou: “eu escrevo livros, por isso sei todo o mal que eles fazem”. 

A arte exerce, de fato, um papel efetivo em nossas vidas. Porém, sua influência pode ser benéfica ou não, dependendo do nível em que nasce, como é utilizada e com que fins, o que traduz, a que nos inspira.

No livro O Consolador1, que traz uma coletânea de 411 perguntas sobre temáticas relativas aos pilares do Espiritismo – ciência, filosofia e religião –, Emmanuel respondeu sobre o assunto, quando lhe foi perguntado, na questão 161 “Que é a arte?”. O benfeitor chama a atenção ali para dois níveis de arte e responde sobre o que ele chama de arte pura: “A arte pura é a mais elevada contemplação espiritual por parte das criaturas. Ela significa a mais profunda exteriorização do ideal, a divina manifestação desse ‘mais além’ que polariza as esperanças da alma.” E, na sequência, Emmanuel comenta sobre o artista verdadeiro, em cujo coração “palpita a chama dos ideais divinos”: 

O artista verdadeiro é sempre o “médium” das belezas eternas e o seu trabalho, em todos os tempos, foi tanger as cordas mais vibráteis do sentimento  humano, alçando-o da Terra para o Infinito e abrindo, em todos os caminhos, a ânsia dos corações para Deus, nas suas manifestações supremas de beleza, de sabedoria, de paz e de amor. 

Se há arte pura e artista verdadeiro, há arte terrena e artistas menores que, na trajetória evolutiva, ainda não alcançaram a inspiração do Mais Alto. Se há uma arte que é busca e contemplação espiritual, há uma outra que não se eleva do mundano, e esta é a mais comum entre nós. Em vez de trazer lampejos de luz, reproduz, ao contrário, nossas fraquezas, nossa fantasia, nossa imaginação, enfim, todo o panorama das nossas emoções ainda não depuradas – e emoções indisciplinadas pela fé podem se fazer acompanhar de graves consequências, segundo Emmanuel. Por seu turno, também segundo o benfeitor, o verdadeiro artista, por viver mais na esfera espiritual, traduz em suas obras lembranças de ricas vivências, ou nelas traduz o impulso que recebe das forças do Infinito. Por não ter interesse na originalidade, nem na fama, mas sim por buscar tocar as almas, revelar e reproduzir a beleza atemporal, a beleza eterna, esse artista serve à arte, em vez de se servir dela (o que é ainda uma intenção bem costumeira no nosso plano).

É do nosso conhecimento, por exemplo, que muitos compositores, com a humildade dos grandes servidores da humanidade, revelaram que apenas foram instrumentos de uma arte superior – mas com a qual se viam afinados, ou nada teriam percebido e muito menos reproduzido na Terra. No plano da literatura, Miguel de Cervantes, segundo informa Sylvio Brito Soares2, foi, entre tantos, um homem junto do qual a Espiritualidade atuou para a elaboração de uma obra de arte: Dom Quixote. Escrita a primeira parte, os Espíritos se afastaram. Sozinho, a produção do escritor foi medíocre, num intervalo de dez anos. Após esse tempo, os amigos espirituais retornaram e juntos concluíram o famoso romance. 

Sobre o genial Beethoven, escreve Sylvio Brito Soares:

Afirmam mesmo que certa feita, em Viena, entrara em um restaurante, e, ao ser-lhe apresentado o cardápio pelo garçom, em vez de escolher o prato de sua preferência, começou, tomado de doce inspiração, a escrever, no seu verso, o que inesperadamente lhe era transmitido. Depois de o haver transformado em partitura, levantou-se e perguntou ao garçom quanto lhe devia… 

Essas e várias outras ocorrências assemelhadas reafirmam as palavras de Emmanuel: “as óperas imortais não nasceram do lodo terrestre, mas da profunda harmonia do Universo, cujos cânticos sublimes foram captados parcialmente pelos compositores do mundo, em momentos de santificada inspiração”.

Muito embora não sejamos gênios da arte, o tema ainda assim nos deveria interessar sobremaneira, porque, como também esclareceu Emmanuel, todos iremos, ao longo de nossas numerosas experiências, amealhar os valores artísticos no patrimônio do Espírito. Quanto mais cedo despertamos nossa atenção para a beleza – meta de toda arte pura –, fazendo germinar em nós os germes do senso estético ou, se mais avançados, depurando esse senso estético, mais e mais aproveitaremos e mais úteis seremos para a humanidade. 

A capacidade de nos admirarmos com o belo é essencialmente humana. Só o homem é capaz de maravilhar-se diante de uma escultura bela, um pôr do sol, uma cena delicada. Os animais não se maravilham diante de um espetáculo da natureza ou de uma sinfonia, como nós. No entanto, quantas vezes o sol ou a lua oferecem espetáculos e não nos damos conta de sua beleza? Quantas vezes, ao invés, nos dispomos a saborear manifestações marcadas simplesmente pela temporalidade, pelo circunstancial, pelo efêmero, pelo que toca o sensorial e nada tem que faça vibrar as fibras mais sutis da alma? Muito do que consumimos com o título de arte não se liga nem por um fio à beleza eterna e, logo, não enleva a alma, como a arte pura que sempre nos convoca para vibrações mais elevadas.

Talvez nos falte compreender um pouco mais sobre o alcance e poder da arte. Já de início, saibamos que, quando enobrecida, seu poder é tanto que, no plano espiritual, é com o seu concurso 

que se reformam os sentimentos mais impiedosos, predispondo as entidades infelizes às experiências expiatórias e purificadoras. E é crescendo nos seus domínios de perfeição e de beleza que a alma evolve para Deus, enriquecendo-se nas suas sublimes maravilhas.

O Consolador, Chico Xavier3

A beleza tem, assim, papel de imensa importância nas nossas vidas, na nossa evolução. Não por acaso o Belo, o Bom e o Justo são temas recorrentes também na filosofia que busca compreender o mundo, o homem e o sentido da vida. 

O filósofo Plotino concluiu, por exemplo, que “a beleza e o bem devem ser buscados no mesmo caminho.” Beleza, bondade, justiça, tudo isso converge na escalada para a elevação espiritual. Se, ao contrário, a arte que valorizamos nos desperta meras sensações, ela faz o caminho reverso; se nos ligamos a essas emanações, não nos surpreendamos da pouca qualidade de nossa vibração espiritual. O tipo de música que repetidamente ouvimos, por exemplo, e que nos satisfaz o gosto, revela bastante bem o padrão da nossa vibração interna. É bom recordar que, na escala evolutiva, as sensações estão ainda muito próximas do instinto. Com a maturidade espiritual, o homem naturalmente vai se distanciando do meramente sensual e vai purificando as emoções e os sentimentos. A arte terrena estaria, assim, nos primeiros degraus, enquanto a arte pura já é saída dos sentimentos depurados, mais acima. 

Não por acaso, Emmanuel organizou as suas respostas sobre a arte justamente numa seção intitulada “Sentimento”. A grande diferença entre as manifestações artísticas que conhecemos está exatamente no ponto em que elas nascem, porque dali já correm por caminhos que sobem ou por caminhos que nada querem com a elevação: as puras nascem dos sentimentos do verdadeiro artista; as terrenas são criações do sensorial ou das emoções não disciplinadas. Cada uma dessas versões produz em nós um tipo de influência: umas nos acalmam, nos convidam para formas mais sublimes de sensibilidade, outras nos mantêm agitados, ou nos prendem nos planos dos desejos, das fantasias, atando-nos na horizontalidade. As primeiras são notadas e muitas vezes inspiradas pela Espiritualidade benfeitora; as segundas secundadas, muitas vezes, pelos Espíritos que se afinizam com o mesmo padrão vibracional. Que tipo de arte temos consumido? Temos aberto as portas do nosso campo mental e do nosso coração para que tipo de criação? Não duvidemos: a arte nos afeta muito mais do que imaginamos. Na antiguidade, Platão já dizia: para o corpo, a ginástica; e para a alma, a música. Léon Denis, por sua vez, nos diz sobre a música: “Nossos pais viam na música o ensino estético por excelência, o mais seguro meio de elevar o pensamento até às sublimes alturas onde reside o gênio inspirador”4.

A Arte, “em qualquer de suas formas puras”, recebe a atenção carinhosa dos invisíveis. Em contato com ela, nos dispomos a aprender a mirar belezas superiores. A arte não pura, eivada do “convencionalismo terrestre”, a que se busca para a glória terrena, é criação destituída dos ideais divinos e caminha na contramão da beleza que enobrece, alivia, ensina. Se nosso desejo é uma vida mais calma e cada vez mais aproximada das esferas elevadas, cuidemos de aprimorar a nossa percepção sobre a arte que nos circunda, nos embala, nos visita rotineiramente. Se refletirmos hoje, com atenção, sobre o que lemos, vemos, ouvimos, selecionando a vibração, amanhã seremos possíveis candidatos a trazer ao mundo, como o fazem os inspirados e os gênios, as belezas celestes que nunca nos arrependeremos de espelhar.

  1. XAVIER, Francisco Cândido. Pelo Espírito Emmanuel. O Consolador. 26a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2006.
  2. SOARES, Sylvio Brito. Grandes vultos da Humanidade e do Espiritismo. 3a ed., Rio de Janeiro: FEB, s/d.
  3.  XAVIER, Francisco Cândido. Pelo Espírito Emmanuel. O Consolador. 26a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2006, q. 168.
  4. DENIS, Léon. O Espiritismo na arte. 2a ed., Rio de Janeiro: CELD, 2014.

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