Cristo não está em Belém

Publicado na Revista O Médium, n o 505, dez/1982 – por Fernando Worm

Eram treze horas quando nosso ônibus, depois por Hebron e Jericó, chegou a Belém. Um tanto apreensivo, cruzei o centro da cidade, reparando em seu casario branco, lojas fervilhando e ruas apinhadas de gente. O objetivo de todos era conhecer o templo da Natividade. Em Hebron eu levara grande susto quando soldados israelenses, portando metralhadoras portáteis, aproximaram-se para a revista aos peregrinos e visitantes do Muro de Herodes e da Tumba do Patriarca. 

Em Belém não havia soldado. Eu “sentia” no ar, ou dentro de mim, um quê de místico, uma mistura de curiosidade, respeito e descrença. Era um santuário igual a tantos outros, igual àquele onde Jesus expulsara os vendilhões do templo. Bati uma foto de minha mãe em frente à fachada principal da igreja e saímos andando. Os dois vínhamos de terras distantes para uma viagem de despedida. Ela portava em seu organismo a enfermidade mortal que, algum tempo depois, a levaria ao túmulo. Sabíamos disto desde uma conversa franca e objetiva com o médico que a tratava.

Adentramos o templo por uma estreita porta de pedra, de 1,60m de altura. Em seguida, atravessamos a nave principal, efusivamente iluminada por candelabros, e logo um padre maronita veio até nós, bandeja na mão, pedindo um óbolo. Um pouco à direita nos deparamos com a pedra de mais ou menos 2,50m de altura, em cuja cavidade, de acordo com a tradição, nasceu Jesus, filho de Maria. Era o momento solar da peregrinação. Crentes acendiam velas à pedra sagrada e enegrecida pela fumaça dos círios. Aproximei-me um pouco mais e, com a ponta dos dedos, fiz como o apóstolo Tomé: eu queria sentir se aquela pedra era mesmo pedra. Minha mãe, sempre com muita fé, ajoelhou-se, fechando os olhos para a prece interior. Afastei-me, então, alguns metros da rocha, próximo ao local onde os três Magos adoraram o Menino Jesus, e eis que vejo ao meu lado um homem de mais ou menos 45 anos, bem trajado e de maneiras nobres, que também contemplava os fieis orando frente à Manjedoura. Olhamo-nos com simpatia, tendo ele me dirigido a palavra em fluente espanhol: “a única coisa que se pode fazer aqui é orar!” Concordei que sim com a cabeça e depois me dirigi com minha mãe à saída do templo. Uma hora depois estávamos na fila do ônibus quando, surpreendentemente, o senhor espanhol da cadeira de rodas veio postar-se logo atrás de nós. Por cordialidade, perguntei-lhe se gostara da visita. Ele fez com a mão um gesto como quem diz: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Mas o diálogo prosseguiu. Contou-me que nascera em Barcelona, na Espanha, e iniciara a vida profissional como professor de línguas. Cursara as melhores universidades espanholas, fez concursos e ganhou uma cátedra para ensinar. Estava casado há quatro anos quando um acidente de automóvel mudou o rumo de sua vida. O carro colidira com um caminhão que entrara na contramão numa curva, num acidente de proporções. Sua mãe, que viajava ao lado, morreria horas depois, enquanto ele era internado numa UTI para um tratamento que se prolongaria por nove meses. Ao sair do hospital, paralítico da cintura para baixo, a esposa o abandonou. Foi em meio ao extremo padecimento de anos de sofrimento que ele se voltou para Jesus e seu Evangelho. Um dia, ao visitar um orfanato de crianças aprisionadas pela paralisia infantil, teve a ideia inspiradora que deu novo sentido à sua vida: fundar uma escola para crianças paraplégicas carentes. Um ano após essa visita, mais de 30 crianças estavam sendo atendidas em sua escola.

 Agora, aproveitando o período de férias, viajara à Terra Santa. Orar, agradecer. Queria “sentir” Jesus no mesmo cenário físico onde se desenrolara a vida, a paixão e a morte do Mestre, desde a Manjedoura ao Calvário.

– Você conseguiu o que queria? – Perguntei-lhe. 

– Não. Não consegui.

Um veículo militar passou rente a nós e, ao cessar o ruído, ele disse: “quase vinte séculos depois, a voz de Cristo não é ouvida nestas paragens. Digo-lhe do que vi. Cristo não está em Belém, não está na Galileia, não está em Jerusalém”. Parou como quem reflete em algo importante e continuou: “sabe onde Cristo está? Vim de tão longe para constatar esta certeza: Ele está na minha escola de crianças carentes. Perdi a saúde, a família, o lar, as esperanças que tinha na profissão. Em troca, recebi o amor a Deus. Você que é escritor, se algum dia escrever sobre mim, inclua este recado: “Cristo está em todos os corações aquecidos pela fé e pela caridade”.

O ônibus estacionou e embarcamos de volta para Jerusalém. Nunca mais o vi.

Neste Natal, sentado em frente à máquina de escrever, lembro-me do que disse naquela inesquecível tarde de visitação a Belém.

Sábias palavras que me basilaram a existência em hora de dor e provação e que, pensando mais abrangentemente, tanto servem a mim como a você leitor, amigo e irmão.

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