Deus na esquina do mundo

Fábio Fortes

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição.
Sophia de Mello BreynerAndresen[i]

De cabelos brancos, olhos azuis e fala tranquila, conheci Christian no curso de “Religião e Moral no Mundo Antigo”, no qual me inscrevi enquanto realizava um estágio de pesquisa fora do Brasil.  Esse gentil septuagenário, que viria a se tornar meu amigo, perguntou-me se, como parece ser o caso de todos os latino-americanos, também eu acreditava em Deus. Resposta automática, declino sem refletir: “sim, eu creio”. A existência de Deus é um dos princípios básicos do Espiritismo, que professo. Refaço-lhe a pergunta, à qual, tranquilamente, ele replica: “não”. Nada que me surpreenda. Na Velha Europa de Igrejas históricas, monumentais e vazias, a parcela da população que se diz sem crença ou ateia é cada vez mais expressiva.

Uma semana depois, Christian me ofereceu, como presente, o livro do filósofo francês André Comte-Sponville (1952-), cujo título, em português, é: O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus, convidando-me a ler e compreender os argumentos daqueles que não creem. Sem saber, ele me colocava diante de um desafio. Tal como Kardec, que se perguntava sobre suas próprias convicções à medida que colaborava para a escrita da Codificação, exercendo sempre o seu espírito crítico, assim eu me via naquela situação. Que razões têm aqueles que não creem? Que razões temos nós para crer? E por que ainda insistimos em crer?

Deus é um problema filosófico

Ao longo dos dias em que mergulhei nas páginas do livro do filósofo francês, aprendi, para começar, que ninguém poderia afirmar racionalmente que Deus não existe; tampouco ninguém poderia afirmar que Deus existe. A crença ou a descrença em Deus é produto de uma convicção interna. Tal convicção pode, evidentemente, estar baseada em princípios que fazem apelo à razão, mas, ao fim e ao cabo, se trata de convicções – ou de fé. Não é sem razão, aliás, que o tema ainda seja matéria de debates filosóficos e teológicos; houvesse prova de um lado ou de outro da disputa, crer ou não crer em Deus seria tão simples como admitir ou não que a fórmula da água seja H20 ou que a Terra, ela mesma tendo um formato que se aproxima de uma esfera, descreve, por sua vez, um movimento em torno do Sol. Ao passo que estes são fatos científicos, a existência de Deus não. Deus é um problema filosófico. Ao problema do movimento da Terra, ao ser pressionado contra sua descoberta, Galileu poderia, ainda assim, afirmar: No entanto, ela se move! Mas e Deus, poderemos sempre afirmar, sem sombra de dúvida, E no entanto ele existe?

O segundo ponto que aprendi é que o mal que pessoas que se dizem religiosas realizam ou realizaram no mundo (para citar dois exemplos, certamente não os únicos ou o últimos: a instituição da Inquisição, em nome do Deus cristão ou o Terrorismo em nome de Maomé) não são razões que fundamentam a negação da existência de Deus. Por óbvio: podemos todos dizer que a essência do Cristianismo, do mesmo modo que a essência do Islamismo, não é base para violência de qualquer sorte, de modo que uma coisa é a crença em Deus – esta genuína para os que creem – e outra coisa é o fanatismo de alguns que conscurpam seu sagrado nome e representam a face violenta de um movimento social, ainda que em torno de ideias de religiões. A violência, a intolerância e o mal não provêm do Deus em que se acredita (ou não), mas do fanatismo religioso (ou não-religioso). Quais são então as razões dos que não creem? São eles: a inexistência de provas, a pobreza da experiência pessoal com Deus, a contradição entre um Deus Bom e poderoso e a fenomenologia de mundo injusto e perverso. São argumentos bastante razoáveis, sobretudo o terceiro: porque a ideia de um Deus onipotente e sumamente bom convive com um mundo em que vemos tanta miséria moral e material, tanta violência e tanta mágoa?

Nós, espíritas, aprendemos com Kardec, nas questões 4 a 9 de O Livro dos Espíritos, que a nossa convicção em Deus se assenta, sobretudo, nas seguintes “provas”: 1) sendo o Universo um complexo que tem inteligência, é preciso ele que possua, por sua vez, uma causa primária inteligente; 2) o sentimento intuitivo dos seres humanos de um Criador se apoia na verdade desse princípio. Ora, do nosso lado temos argumentos igualmente razoáveis. Entretanto, não são propriamente “provas”, no sentido material ou mesmo científico do termo, mas razões ou argumentos para uma posição filosófica. Se acreditamos na premissa da causalidade (os eventos do mundo não são fortuitos, mas se encadeiam em causas, que engendram consequências), podemos admitir o primeiro argumento – Deus é a causa primária. Se, por sua vez, admitirmos que haja elementos em comum entre todos os seres humanos e que, como atestam algumas evidências que podemos encontrar na história, a crença em Deus é um deles, poderemos igualmente admitir, filosoficamente, a verdade do segundo argumento – a intuição de Deus. Meu amigo Christian, certamente, não admite nenhuma dessas premissas: para ele, o mundo não é produto de uma causalidade, mas de um acaso probabilístico; tampouco acredita em qualquer elemento universal que nos unifique enquanto homo sapiens. Mas e quanto aos dois outros argumentos contra a existência de Deus elencados pelos irmãos ateus, a saber: a pobreza da experiência “divina” e a contradição entre a existência de um Deus Bom e um mundo mau? Como nós, espíritas, nos posicionaríamos diante desses impasses? 

O problema do mal em um mundo em transição

Se não me perguntas, eu sei o que é; se me perguntas, não sei. São essas as palavras de Santo Agostinho (354-430), em suas Confissões, para definir o tempo. No Gênesis bíblico, narra-se que Deus teria criado o espaço, a luz, os seres, mas não o tempo; isso porque – eu diria –  a noção de tempo é ela mesma inerente à própria ideia de Deus. Diferentemente de todos os seres submetidos à história, Deus com ela se confunde, em sua única eternidade de Criador. Assim como não sabemos conceituar o tempo, também não podemos definir Deus. Já dizia Kardec, em A Gênese, “a linguagem humana é impotente para dizê-Lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de nos facultar uma ideia de tal coisa”. Não temos ainda linguagem. Em outras palavras: não possuímos ainda estatura intelectual para compreender Deus. Mas, por outro lado, podemos senti-Lo?

O grande desafio que a Humanidade enfrentanão se limita à pandemia que atravessamos, com os receios que ela evoca, com as inseguranças básicas quanto à preservação da vida e a necessidade de reflexão que se impõe. A Doutrina Espírita nos ensina que somos nós, no mais das vezes, os causadores do sofrimento dos dias de hoje. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, no seu capítulo 5, aprendemos que os infortúnios pelos quais passamos são, em grande número de vezes, causados por nós mesmos; não por Deus ou por outros em vidas passadas, mas por nós mesmos, frequentemente nesta vida de agora. No entanto, em vez de reconhecer nossa responsabilidade, não raro agimos como crianças, atribuindo aquilo que é de nossa própria alçada a Deus ou, ainda, revoltando-nos contra Ele. Ora, se Deus é a causa do que existe, Ele não é, segundo o Espiritismo, a causa do mal que nos sucede, este sempre condicionado às nossas ações. Afinal de contas, até mesmo no mal revela-se a oportunidade de crescimento e de aprendizado. Sim, por vezes um remédio amargo. Isso significa que o mal que criamos não diz nada sobre a existência de Deus, uma vez que as consequências de nossos atos são sempre resposta de nossa vontade. Por isso somos seres morais: nossa felicidade ou infortúnio são modos de estar no mundo, segundo nossas escolhas.

Como sentir Deus?

Meu bom amigo Christian, a quem aludi acima, não é efetivamente um crente. É um ateu. Nega Deus como quem não aceita aquilo para o que não vê, na sua perspectiva, evidências. Mas isso não significa que não seja uma pessoa espiritualizada. Espiritualização não é a mesma coisa que seguir uma religião. Divaldo Franco, o grande orador espírita que todos nós respeitamos e admiramos, afirmou em uma entrevista dada para uma rede de televisão que “prefere um ateu digno do que um religioso hipócrita”. Ora, a meu ver, Divaldo tem razão: aqui na Europa, embora boa parte das pessoas sejam ateias, tal não significa que elas se importem menos com o seu próximo ou que não sejam capazes de pensar nos semelhantes. Christian, meu amigo, é um bom exemplo do que falo: os gestos de acolhimento desse simpático septuagenário revelam amizade, o que evidencia que um ateu pode ser tão ou mais preocupado com o próximo que um religioso que se diz “cristão”. Dito isso, sabemos que a visão de Deus não é exclusividade dos que se alinham a fileiras religiosas.

No belo texto “A visão de Deus”, presente no capítulo 2 de A Gênese, Kardec nos diz que não é necessário “ver” para saber: “Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força”. Os Espíritos nos ensinam que é preciso ver pelos “olhos do Espírito”, uma vez que somente a nossa alma pode ter a percepção de Deus. Mas como desenvolver essa percepção? Jesus, no Sermão da Montanha, nos oferecera um caminho: “Olhai os lírios do campo, olhai as aves do céu” (Mt 6:24 e 26). Se não formos capazes de fazer pausas em nosso veloz cotidiano, para voltar nosso olhar para o mundo que nos cerca, dificilmente seremos capazes de também nos reencontrar conosco mesmos, o que é a condição para uma experiência espiritual autêntica. A pandemia pela qual passamos é um sintoma dos nossos tempos, a nos obrigar a empreender essa progressiva dobra para dentro de nós mesmos. Pois é aí, no nosso interior, que poderemos sentir Deus, já que suas leis estão inscritas dentro de nós. Se não levantarmos os olhos para ver em perspectiva o mundo, tendo como perspectiva o que nós somos, não seremos capazes de ver que, apesar de tudo, as flores já voltam a nascer na primavera, que em cada esquina do mundo há um convite para amar e ser feliz.


[i]ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética. Lisboa: Tinta da China, 2009

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