Uma perigosa obsessão

José Fernando

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas. (Mt 10:16)

Allan Kardec classificou o fenômeno obsessivo em três níveis: o menos danoso, que é a obsessão simples; a fascinação, que prejudica bastante o fascinado; e o grau maior, que é a subjugação completa da infeliz vítima.i No presente artigo, nossas considerações focam na análise da categoria obsessiva por ele nomeada de “fascinação” sob nova perspectiva, enveredando por caminhos ainda mais tortuosos. Considerada por Kardec como grau mediano de perturbação, a fascinação, porém, em certas circunstâncias, pode atingir altos níveis de distúrbio e desequilíbrios gerais. Trata-se da fascinação coletiva, que não envolve apenas um indivíduo, mas sim, uma coletividade humana.

No decorrer da história da Humanidade, verificaram-se períodos em que turbas seduzidas por ideologias nefastas praticaram atos desprezíveis, causando medo e pavor às vítimas contrárias às suas ideias. A chamada Santa Inquisição, deflagrada pela Igreja Católica nos períodos medievais, foi uma nefasta ideologia de superioridade da Cúria Romana de horrendas consequências, ao ponto de fazer com que pias autoridades religiosas, do papa ao mais singelo pároco de aldeia, praticassem atos ignóbeis e anticristãos nunca antes perpetrados em ambientes sacerdotais.

No Brasil, estranho e criminoso fato, típico de uma obsessão por fascinação coletiva, assolou a colônia de imigrantes japoneses no estado de São Paulo.ii Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a vitória dos aliados contra o nomeado “Eixo” – composto pela Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão imperialista –, surgiu, em São Paulo, uma organização secreta japonesa, a Shindo Renmei, ou Liga dos Caminhos dos Súditos. Seus fanáticos seguidores, aguerridos cultores da divinização do Imperador Hiroito, alegavam que a rendição de seu amado Imperador aos americanos, ocorrida em 2 de setembro de 1945, fartamente documentada à época, teria sido uma escandalosa fraude. Em consequência dessa falsa ideia e utilizando recursos de deturpação e adulteração das notícias da guerra que a imprensa publicava, convenceram milhares de imigrantes, conhecidos por kachigumi, a não aceitarem a derrota. Aqueles que não concordaram com este posicionamento, os makegumi, ou derrotistas, também alcunhados de “Corações Sujos”, tinham suas residências invadidas e depredadas. No período de 1946 a 1947, os tokkotai (matadores) levaram à morte 23 imigrantes e deixaram centenas de feridos. Milhares de kachigumis foram presos e deportados, encerrando este triste episódio e sepultando o fanatismo ideológico da superioridade do império japonês.

Refletindo acerca da polarização ideológica, disseminada em vários setores da sociedade atual, permitimo-nos uma análise mais acurada dos fatores psíquicos e emocionais propiciadores dos radicais posicionamentos de alguns partidários que se digladiam em exacerbado antagonismo. Não faz tanto tempo, a comunidade científica norte-americana deu relevante destaque ao trabalho do ilustre psicólogo social Leon Festinger, que abordou a questão em análise com o título, aqui simplificado de“When prophecy fails” (Quando a profecia falha).iii Em seu aplaudido tratado científico, publicado em 1956, Festinger e mais dois colegas aprofundaram pesquisas de campo acerca de uma comunidade religiosa da cidade de Chicago, com milhares de adeptos, denominada “Flying saucer contactee” (Contatos com discos voadores), chefiada por Mrs. Dorothy Martin. Essa prosaica dona de casa americana dizia receber mensagens “mediúnicas” dos space brothers (irmãos do espaço), dizendo que aconteceria uma inundação em 21 de dezembro daquele ano, 1954, que partiria os Estados Unidos em dois e mataria milhões de habitantes. Segundo afirmava, ela e os demais participantes da seita foram escolhidos para alertar o mundo e se preparar para serem abduzidos por discos voadores que os conduziriam a local seguro, um verdadeiro Éden. Leon Festinger e vários colegas psicólogos se infiltraram no grupo para estudar os efeitos psicológicos da profecia nos apoiadores, caso ela não viesse a se concretizar. Se a profecia falhasse, eles abandonariam suas crenças? Era a grande incógnita. Empolgados e amedrontados com o que poderia acontecer, muitos crentes abandonaram seus empregos, seus estudos, doaram seus bens para a aludida seita, e puseram fim aos seus relacionamentos com aqueles que não eram adeptos daquela grei. Como o dilúvio não aconteceu e nenhum disco voador apareceu, teoricamente, a Sra. Dorothy deveria ser desacreditada e prontamente desmascarada. Ao contrário do que racionalmente se supunha, salvo uma minoria, os crentes foram tomados de júbilo, e se tornaram ainda mais fiéis, porque ela afirmou que o mundo foi poupado como prêmio pela confiança deles e pelo simples fato de eles, os partidários da seita, existirem. 

Segundo Festinger, “a dor emocional de admitir o erro seria tão elevada para aqueles que tinham alterado de forma tão substancial suas vidas que seria menos oneroso, emocionalmente, continuar acreditando nos princípios errados daquela seita”. Coroando seu trabalho, Leon Festinger então cunhou o termo “dissonância cognitiva” para este tipo de reação, explicando que esta inconsistência se trata de um viés cognitivo que leva as pessoas a procurarem algum tipo de coerência em suas crenças e ideologias, embora a realidade as desminta constantemente com fatos concretos.

Giuliano da Empoli, ensaísta político, jornalista e romancista italiano, em seu atualíssimo livro Os engenheiros do caos, editado em 2019, faz um estudo bem mais moderno deste tipo de obsessão por fascinação coletiva, no qual aborda, com propriedade, as inquietantes novidades das chamadas “fake news”, das “teorias da conspiração”, dos algoritmos e da forma como estas novidades estão sendo utilizadas para disseminar ódio, medo e influenciar eleições em todos os continentes.iv Segundo o estudioso,

Se o algoritmo das redes sociais é programado para oferecer ao usuário qualquer conteúdo capaz de atraí-lo com maior frequência e por mais tempo à plataforma, o algoritmo dos “engenheiros do caos” os força a sustentar não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela leve em conta as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores.

Vale a pena recordar curiosa frase atribuída a Mark Twain, consagrado escritor norte americano, que, em um laivo de inspiração, ainda no século XIX, teria vislumbrado a modernidade da vida on-line, afirmando que “uma mentira pode dar volta ao mundo, enquanto a verdade leva o mesmo tempo para calçar os sapatos”.

A obsessão por fascinação, estudada por Allan Kardec, se ateve a um processo individual de obsessão. Nada obsta de aplicar-se, por analogia, a comprovação kardequiana aos movimentos atuais de fascinação coletiva. Durante o período de pré-eleições, em nosso país, amizades foram destruídas e famílias se contenderam em defesa de suas ideologias e opções partidárias. Nem mesmo o Movimento Espírita ficou imune às investidas trevosas que tudo fizeram para fracionar e romper os laços de unidade e bom senso que caracterizam a Doutrina. Conhecidos médiuns, ainda que bem poucos, vieram a público para expressar suas convicções políticas, escorregando facilmente na “casca de banana” da opção partidária, totalmente contrária à recomendação de André Luiz, que, no livro Conduta espírita, orienta-nos a distanciar do partidarismo extremado, deixando claro que “paixão em campo, sombra em torno”.v

Percebeu-se que Espíritos alheios ao bem concentraram suas maléficas insinuações nos grupos de WhatsApp dos centros espíritas, grupos estes que se tornaram, após a pandemia de Covid-19, uma extensão virtual da instituição e da tribuna espíritas. Alguns, repetimos, ainda que bem poucos, mesmo com os reiterados alertas dos administradores, lá tiveram a infeliz oportunidade de provocar cisões e acaloradas discussões entre participantes invigilantes, fascinados que estavam não só pelas ideologias, mas também por aqueles que as representavam.

Cotando o venerável Codificador em “O Livro dos Médiuns”,vi observa-se que:

O médium fascinado não acredita que o estejam enganando: o Espírito tem a arte de lhe inspirar confiança cega, que o impede de ver o embuste e de compreender o absurdo do que escreve, ainda quando esse absurdo salte aos olhos de toda gente. A ilusão pode mesmo ir até ao ponto de o fazer achar sublime a linguagem mais ridícula.

Kardec deixa claro que a fascinação pode envolver pessoas de quaisquer níveis sociomoral e intelectual quando afirma que

fora erro acreditar que a este gênero de obsessão só estão sujeitas as pessoas simples, ignorantes e baldas de senso. Dela não se acham isentos nem os homens de mais espírito, os mais instruídos e os mais inteligentes sob outros aspectos, o que prova que tal aberração é efeito de uma causa estranha, cuja influência eles sofrem.

Concluindo nossas reflexões, cabe enfatizar que a Doutrina Espírita é rica em orientações para a busca de recursos profiláticos contra as obsessões. Igualmente Jesus, na máxima “vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 26:41), nos apresenta estes dois pilares de sustentação de nossa agudeza mental – vigilância e oração –, para não sucumbirmos às fascinações deletérias das ideologias de plantão.

Ademais, podemos nos escorar em métodos modernos de relacionamentos saudáveis como a comunicação não violenta, criada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg e baseada na capacidade de ouvir as opiniões dos outros sem julgamentos prévios.vii Afinal, o ponto de vista do outro não é nosso adversário, mas pode somar-se ao nosso para alcançarmos uma fatia maior de lucidez de raciocínio

Quanto ao radicalismo de opiniões, convém rememorar sempre o discreto posicionamento de Jesus, que, ao ser inquirido pelo governador da Galileia sobre o que é a verdade, simplesmente manteve-se em sagrado e honroso silêncio(Jo 18:38).

i KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, c. XXIII.

ii MORAIS, Fernando. Corações sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

iii FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

iv EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. 1ª ed., São Paulo: Vestígio, 2022, p. 20.

v VIEIRA, Waldo. Conduta espírita. Pelo Espírito André Luiz. Rio de Janeiro: FEB, 2002, cap. X.

vi KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, c. XXIII, i. 239.

vii ROSEMBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

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