O ser, o tempo e suas escolhas
Scheila Mara Batista Pereira
Era manhã de domingo. Algum vizinho, certamente bem-inspirado, iniciou o dia ouvindo a clássica canção “Felicidade”, de Lupicínio Rodrigues, na voz de Maria Bethânia. Acompanhei melodia e letra, cantarolando com Bethânia (que ousadia!).
Irresistível não me deter nos já imortalizados versos: “O pensamento parece uma coisa à toa/Mas como é que a gente voa quando começa a pensar”.
Emmanuel, no prefácio da obra Pensamento e Vida, vai dizer ao leitor que “(…) o nosso pensamento cria a vida que procuramos, através do reflexo de nós mesmos (…)”.i A partir daí, aprofunda-se, em outros capítulos do livro, na análise desse conteúdo [o pensamento], destacando a gravidade do tema para nós.
De forma generalizada, podemos dizer que o pensamento é uma propriedade ou um atributo da alma, que só existe nela e nunca fora dela. A palavra “pensamento” é empregada para designar todos os tipos de fenômenos mentais: percepções, sentimentos (mesmo aqueles dos quais sequer temos consciência), imaginação, desejos, memória, vontade etc.
O benfeitor espiritual adverte-nos, no capítulo 1 da referida obra, que na mente tudo se desloca e se renova, obedecendo aos princípios de INTERDEPENDÊNCIA e REPERCUSSÃO. Assim, temos o ciclo: REFLEXO esboça EMOTIVIDADE, que plasma IDEIA, que determina ATITUDE e PALAVRA, que comandam as AÇÕES.
Há muito o que se extrair desse ensino de Emmanuel, posto que o pensamento gera um campo de interações mentais entre os Espíritos, que repele aquilo com o qual não tem afinidade e atrai tudo o que estiver em sintonia com ele. Os fluidos espirituais são o veículo do pensamento, por isso, respiramos no mundo das imagens que projetamos e recebemos. “Ninguém permanece fora do movimento de permuta incessante”, reforça o Espírito amigo.
Para tornar a questão ainda mais instigante, Allan Kardec, em Obras Póstumas, no capítulo “Telegrafia e fotografia do pensamento” (1a parte), compara a memória, que alimenta o pensamento e é por ele alimentada, a um álbum de fotografias. Aponta o Codificador:
Quando o Espírito encarnado se lembra, de certo modo, sua memória lhe apresenta a fotografia do fato que ele procura. Em geral, os encarnados que o cercam nada veem; o álbum se acha em lugar inacessível ao olhar deles; mas, os Espíritos o veem e folheiam conosco. Em dadas circunstâncias, podem até deliberadamente ajudar nossa pesquisa, ou perturbá-la.
Refletindo sobre a metáfora do álbum de fotografias, entendemos que nosso pensamento repercute no espaço e atrai para junto de nós Espíritos que conosco se afinam e a quem damos acesso, de forma consciente ou inconsciente, às nossas memórias. Vale nos perguntarmos: que fotografias estão sendo trazidas ao nosso pensamento e por que razão vieram à lembrança? Teremos uma pista de quem são nossas companhias espirituais e que emoções têm plasmado nossa ideia.
Allan Kardec, na questão 911 de O Livro dos Espíritos, propõe uma pergun ta que nos interessa muito de perto, no que diz respeito à relação pensamento-mudança. Indaga o Codificador se não existem paixões tão irresistíveis a ponto de a vontade ser impotente para superá-las.
Os Benfeitores Espirituais são objetivos na resposta, da qual destacamos o trecho: “(…) [as pessoas] estão muito satisfeitas de que não podem superar suas paixões e o seu Espírito nelas se compraz por consequência de sua própria inferioridade (…)”.
Um dos aspectos apontados pelos Espíritos nessa questão é que a dificuldade em realizar mudanças reside na FIDELIDADE PSÍQUICA que mantemos com nossas existências anteriores. Reproduzimos comportamentos com os quais já nos habituamos e somos fiéis a eles, repetindo experiências. Seguimos, conforme esclarece Emmanuel, na condição de “Herdeiros de milênios, gastos na recapitulação de muitas experiências análogas (…) no rio de hábitos aos quais nos ajustamos sem resistência.”ii
A pergunta é: quem está inspirando nosso psiquismo? O passado? Ou a proposta de transformação moral trazida por Jesus? São duas forças: uma que estimula a repetição de padrões, outra que convida a seguir para frente. Qual delas estamos seguindo? A que tipo de influência estamos cedendo? Não falamos de influências externas, mas das que exercemos sobre nós mesmos.
Concluímos com a reflexão do professor Fernando Teixeira de Andrade, que, sobre mudanças e travessias, adverte:
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia, e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado à margem de nós mesmos.iii
i XAVIER, Francisco C. Pensamento e vida. Pelo Espírito Emmanuel. 32. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2007, prefácio.
ii Idem, c. 20.
iii Referência não encontrada.
Excelente reflexão! Muito boa a referência do Obras Póstumas nesse capítulo sensacional. Me lembra muito o trabalho da Yvone Pereira.