As controvertidas reuniões de cartas consoladoras

José Fernando

Amados, não creiais a todo Espírito, mas provai se os Espíritos são de Deus (I Jo 4:1)

Na ensolarada manhã do dia 15 de março de 1974, o sr. José Presente acordou com o peito opresso, pleno de delirante expectativa. Como se um raio solar o atingisse, saltou da cama presto, sentindo-se envolvido por calorosa sensação de que tudo iria se transformar a partir daquele dia.

Acordou sua esposa, a senhora Josefina Basso Presente, e ambos aceleraram os preparativos para a longa viagem que fariam a Uberaba, na esperança de um contato direto com o missionário médium Francisco Cândido Xavier.

Eram passados 42 dias da morte de seu jovem filho, Jair Presente,[1] e o casal ainda vivia um luto sofrido e angustiante. Católicos praticantes, não encontravam em sua religião a explicação consoladora de um acontecimento tão martirizante.

Jair, aos 25 anos de idade, estudante aplicado, aprovado brilhantemente nos vestibulares de três grandes faculdades, cursava o 4o ano de Engenharia Mecânica na Unicamp quando, em dolorosa surpresa para a família, desencarnou de forma inacreditável. Jovem de porte atlético, acostumado aos exercícios físicos, morrera afogado em Praia Azul, município de Americana, a alguns quilômetros de Campinas, onde residia. Era, portanto, perfeitamente compreensível a ansiosa expectativa deste amoroso pai ao vislumbrar a possibilidade de obter notícias auspiciosas e confiáveis do ser amado que jamais retornaria ao convívio do lar.

Para ele, a mensagem que receberia de um médium respeitado, reconhecido nacionalmente como autêntico psicógrafo cristão, era o fato promissor que faria com que seu filho retornasse ao convívio emocional do lar, como os “fios tecidos por Ariadne”, utilizados por Teseu para encontrar o caminho que o traria de volta da morte ao coração de sua amada.  

Com foco nesta angustiante expectativa de receber notícias confiáveis do além é que passaremos a refletir sobre as chamadas reuniões de “Cartas Consoladoras”.

Pesquisando o referido tema,[2] encontramos no periódico Physis, Revista de Saúde Coletiva (2020), de publicação trimestral do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), relevante trabalho de pesquisa realizado por Márden Cardoso Miranda Hott e Amanda Márcia dos Santos Reinaldo, ambas formadas em Enfermagem Aplicada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com o título “O potencial consolador das cartas psicografadas na saúde emocional de enlutados”, as autoras, em pesquisa avançada, trazem-nos importantes confirmações científicas e estatísticas sobre o benefício destas atividades para aqueles que, no jargão acadêmico, convencionou se chamar de “portadores de LC”. Entende-se por LC (Luto Complicado) a desorganização emocional prolongada que impede o enlutado de retomar suas atividades com a mesma qualidade de vida que antecedia à inesperada e irreparável separação.

No citado estudo, concluíram que efetivamente as mensagens mediúnicas possuem potencial capaz de melhorar os sintomas aflitivos daqueles que as recebem pessoalmente. Finalizaram dizendo que fica comprovada a validade da máxima popular que interpreta as cartas psicografadas como consoladoras, ressalvando, porém, que, na área médica, a “Carta Consoladora” não pode ser considerada uma indicação terapêutica, porque sua emissão depende de fatores que ainda estão longe de serem compreendidos, mas, sim, um meio capaz de atenuar a dor emocional dos portadores de LC. Reiteram que tudo dependerá da força de convencimento do teor da psicografia, dos detalhes de comprovação, da credibilidade de quem a emitir e da credulidade de quem a receber, sendo, praticamente todas, sujeitas a critério subjetivo.

 Apresentamos acima as conclusões científicas acerca da prática do assunto ora debatido. Conjecturando sobre as assertivas contidas no aludido trabalho, valemo-nos das propostas conclusivas das autoras do estudo para adicionar o conteúdo doutrinário aos seus raciocínios científicos.

Antes, porém, convém considerar que há, neste acidentado terreno dos fenômenos, inúmeros médiuns embusteiros que, com o intuito de autopromoção, como também o de usufruir compensações financeiras, produzem incontáveis fraudes. Como exemplo, podemos citar aqueles que, por meio das redes sociais, colhem informações detalhadas sobre a família do morto para, depois, escreverem estas informações como se fossem ditadas pelo Espírito desencarnado. Não entraremos nessa análise, nem na análise do mérito jurídico, nem mesmo no alvoroço midiático causado pela apresentação, pela defesa de uma carta psicografada durante o júri popular dos acusados pelo incêndio da boate Kiss.

Nossa reflexão está voltada unicamente para as reuniões de “cartas consoladoras” praticadas pelas casas espíritas consideradas dentro dos padrões ditos kardequianos. Abordaremos as falas conclusivas da referida tese acadêmica no que concerne ao teor da psicografia, aos seus detalhes de comprovação, à credibilidade do médium e à credulidade de quem recebeu a carta, tendo em vista apenas a sua aplicação em nossa seara medianímica.

Indiscutivelmente, o teor da psicografia será crucial para que a mensagem alcance o clima caloroso de consolo e conforto para corações dilacerados pela dor indescritível de se perder um ser amado. Terá que ser de cunho otimista, muito embora a irreversibilidade do fenômeno da morte deixe poucas chances para tal. No entanto, se estruturada nas balizas doutrinárias, o teor da missiva deixará uma chama de esperança e abrirá sendas de renovação interior a todos os náufragos das procelas que o barco da vida deixou à deriva nas praias largas das provações e expiações humanas.

Outro fator primordial para que se caracterize uma carta psicografada consoladora, sem dúvida, reside nos detalhes de comprovação. À medida em que é feita a leitura pública da carta, vai-se deparando com informações que somente os que se privaram da convivência diária do desencarnado, ora missivista, teriam possibilidade de conhecer. Neste momento, a comoção transborda dos corações ansiosos ali presentes, em soluços e sorrisos de esperança e de gratidão a Deus, testificando, assim, a consoladora autenticidade do fenômeno.

Leciona Kardec, ao analisar a veracidade de uma vidência, que

é preciso, muito especialmente, levar em conta o caráter, a moralidade e a sinceridade habituais (do médium); todavia, nas particularidades, sobretudo, é que se encontram meios de mais segura verificação, porquanto algumas há que não podem deixar suspeita, como, por exemplo, a exatidão ao retratar Espíritos que o médium jamais conheceu quando encarnados.[3]

Este ensinamento também se aplica ao exame das cartas consoladoras. Nome, aparência, trejeitos e assinatura, próprios dos desencarnados, bem como assuntos tratados confidencialmente quando ainda na carne são detalhes que imprimem à mensagem o caráter consolador, pois sedimentada em fatos comprovadamente verdadeiros.

   Fundamental se torna atender ao conselho kardequiano de levar em conta o caráter moral ao verificar a credibilidade do médium. Retomando o caso do jovem Jair Presente, o psicógrafo Chico Xavier dispensa a confirmação de sua credibilidade. Dono de um conceito moral irrefutável, estruturado em longa vida de sacrifícios e renúncias em prol da mediunidade, Chico se tornou um símbolo universal de cristão probo e, se fosse católico, talvez já estivesse em processo de canonização. Porém, como ainda em nosso meio poucos são aqueles médiuns que já solidificaram na consciência pública estes pendores da alma, devemos ficar atentos aos seus trabalhos, analisando criteriosamente suas produções psicográficas.

   Por último, imprescindível se torna considerar a credulidade de quem recebeu a carta. Não raro, o solicitante de uma carta psicografada assim o faz porque vivencia um momento de grande fragilidade emocional e, nestas angustiantes circunstâncias, tende a aceitar qualquer informação que possa amenizar suas dores, mesmo que temporariamente, como uma tábua de salvação. É principalmente neste quesito que a instituição espírita deve ficar atenta quando dá início a uma reunião de “cartas consoladoras”.

A prática vem demonstrando que, em alguns centros, tais trabalhos costumam não atender às três condições aqui assinaladas. Primeiro, ressalta-se a grande ausência de médiuns ostensivos, portadores de mediunidade capaz de detalhar fatos e circunstâncias que fogem ao alcance da maioria dos atuais portadores de faculdades mediúnicas. Em O Livro dos Médiuns, o mestre de Lyon se refere a estes lidadores da mediunidade como pertencentes a uma categoria de médiuns especiais, segundo o gênero e a particularidade das comunicações, dando a eles o título de “médiuns positivos”. De acordo com Allan Kardec, “suas comunicações têm, geralmente, um cunho de nitidez e precisão que muito se presta às minúcias circunstanciadas, aos informes exatos.” O Codificador, ao final, sentencia: “muito raros.”[4]

Interessante que, se naquela época de abundância de fenômenos mediúnicos, Kardec já considerava a raridade de médiuns positivos, hoje, com a escassez de médiuns ostensivos em grande parte das reuniões mediúnicas, mais sensatez devemos ter na formação de grupos de trabalho de tamanha especificidade.  

Infere-se que algumas mensagens podem até apresentar um certo conteúdo consolador, porém, perquirindo com atenção, podemos constatar que os textos consoladores lá descritos se assemelham muito a mensagens de ânimo e incentivo decoradas de livros de autoajuda. Ocorre também conterem frases e trechos semelhantes às mensagens do Espírito Emmanuel, que qualquer trabalhador espírita, com razoável estudo da Doutrina, é capaz de memorizar e transcrever literalmente ou com suas próprias palavras.

É notório o cuidado de Allan Kardec em investigar o conteúdo das mensagens que chegavam ao seu alcance. Na parte final de O Livro dos Médiuns, pouco estudada por diversos dirigentes de reuniões mediúnicas, o mestre de Lyon relaciona várias mensagens consideradas por ele comunicações apócrifas. Cita comunicações de Espíritos que se deram nomes veneráveis como de Vicente de Paulo e outros, cujos teores apresentavam textos ditos consoladores e, algumas vezes, até de exaltação ao bem. Kardec conclui que, na verdade, o encadeamento do texto e o sentido pueril daquelas informações não transmitia o real consolo que se esperava de tais escritos.[5]

Particularmente, de pessoa amiga, agraciada com uma carta consoladora, ouvimos o desabafo de que ela, frustrada, considerava-se vítima de uma propaganda enganosa, tendo em vista que esperava da instituição que frequentava algo mais profundo, mais intimista e autêntico, pois, na carta recebida de sua irmã, tragicamente desencarnada, encontravam-se somente frases que ela poderia ouvir em uma simples palestra doutrinária.

Um grande perigo que se observa nesse tipo de trabalho é o destaque que acaba se dando ao médium que psicografa tais mensagens. Mesmo entre seus companheiros, pode incorrer certa discriminação, quase sempre promovida por Espíritos divisionistas, interessados em obstaculizar a harmonia dos trabalhos. Neste caso, somente um caráter de grande humildade poderá ser o escudo protetor das investidas destes infelizes promotores do caos. As pessoas que procuram essas reuniões, muitas vezes, não são espíritas e, vivenciando experiências dolorosas, são capazes de exercer pressão psicológica sobre os trabalhadores, forçando-os no sentido de obterem essas informações a qualquer custo.

   Para nossa alegria, além da constatação científica do caráter consolador dessas reuniões, detalhado no início, temos também o resultado de outro estudo de pós-doutorado que analisou, especificamente, a mensagem do jovem Jair Presente. O jornal Tribuna de Minas realizou uma entrevista com os pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (NUPES) da UFJF Alexander Moreira-Almeida, Alexandre Caroli Rocha e Denise Paraná acerca de um estudo publicado por eles. Segundo Alexander, o aludido trabalho científico comprovou que, após 40 anos da desencarnação do jovem Jair, a veracidade dos fatos narrados nas 13 cartas recebidas por seus pais foi realmente constatada. No estudo, foram selecionados 99 itens como nomes e fatos precisos e concluiu-se que 97 deles eram verídicos. Utilizaram entrevistas com amigos e parentes, documentos pessoais do desencarnado, recortes de jornais e pesquisas em cartórios, verificando, inclusive, que muitas das informações colhidas eram desconhecidas até mesmo dos próprios familiares.[6]

   Diante de tantas restrições, poder-se-ia dizer que são inviáveis tais reuniões? Na verdade, não. Os cuidados deverão ser redobrados e os participantes escolhidos com muito critério.


[1] RAMACIOTI, Caio; XAVIER, Francisco Cândido. Jovens no além. De Espíritos diversos.

[2] HOTT, Márden M. C.; REINALDO, Amanda Márcia dos Santos. O potencial consolador das cartas psicografadas na saúde emocional de enlutados. In: Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro: UERJ, 2020 (acesso em https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300220).

[3] KARDEC, Allan.O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 14, i. 167.

[4] Idem, i. 193.

[5] Idem, 2a p., c. 31, XXIX.

[6] Jornal Tribuna de Minas,reportagem de 01/02/2015.

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