Franz Jägerstätter, um símbolo da objeção de consciência

José Fernando

Singular e austera foi a vida de Franz Jägerstätter[1]. Nascido em Sankt Radegund, recôndita aldeia situada nas terras altas da Áustria, no dia 20 de maio de 1907, Franz é um destes inúmeros heróis anônimos, cujos testemunhos e glórias não empolgaram multidões e ainda permanecem ignorados pelas massas ávidas de espetáculos dantescos e revolucionários. Seu mais extraordinário feito foi atender aos ditames da sua consciência, chegando às raias da sanidade em uma atitude quase sobre-humana.

De vida simples, como todo camponês austríaco de seu tempo, Franz herdou uma propriedade rural de seu pai adotivo e, no ano de 1936, casou-se com Franziska Schwaninger, jovem profundamente católica e que o teria influenciado bastante em suas futuras tomadas de posição. Como fruto deste consórcio, nasceram três filhas.

Sua particular epopeia teve início em 12 de março de 1938, quando o Exército da Alemanha invadiu a Áustria e anexou aquele território ao Terceiro Reich. Procurando conhecer os princípios que norteavam a ideologia nazista, chegou à conclusão de que, além de este regime ser ditatorial e antidemocrático, também era, segundo suas concepções religiosas, a representatividade do Mal.

Diante destas constatações, foi o único morador daquela aldeia a rejeitar a interferência alemã nas decisões munícipes. Instado pelo Conselho da Aldeia a se alistar no exército austríaco, que daria apoio ao Reich, recusou-se terminantemente. A partir de sua recusa, passou a sofrer discriminações por parte dos aldeães, que, por diversas vezes, hostilizaram suas filhas e esposa, chegando às vias das agressões físicas. A maioria dos austríacos, até então, acreditava nas promessas dos invasores nazistas de reerguer a economia da Áustria, bastante abalada depois da Primeira Grande Guerra.

Em junho de 1940, Franz foi recrutado pelas Forças Armadas alemãs, tendo terminado seu treinamento na guarnição de Enns, mas, negando-se, categoricamente, a prestar juramento de fidelidade a Hitler. Com base na isenção do Serviço Militar, pelo fato de ser agricultor, retornou à sua fazenda. Impressionado pela proibição da prática religiosa e estarrecido diante de relatórios sobre o Aktion T4, programa de eutanásia por meio da esterilização de “incapazes”, passou a questionar a moralidade da guerra. Viajou a Linz com o propósito de confabular com o bispo da região. Retornou, todavia, à sua herdade, entristecido e desiludido pela posição dúbia do prelado, como também pela omissão da Igreja diante do descalabro moral da inusitada situação do seu país e do mundo.

Novamente convocado, recusou-se a lutar a favor da Alemanha. Por este motivo, foi preso pela polícia austríaca, em fevereiro de 1943, e levado para a prisão na localidade de Enns. Em março, recorreu às autoridades alemãs, alegando objeção de consciência, devido aos seus princípios religiosos e à sua índole pacifista. Em contrapartida, ofereceu-se para servir como paramédico no front da guerra. Sua oferta foi negada de maneira irrevogável e, ato contínuo, foi colocado sob custódia na prisão de Linz e, posteriormente, conduzido para a prisão de Tegel, em Berlim.

Durante o período em que aguardava sua sentença definitiva, foi excessivamente torturado e espancado pelos soldados para que prestasse juramento a Hitler. Um defensor público, designado pela Junta Militar, apresentou-se com a finalidade de informar-lhe que, se concordasse em assinar uma carta de renúncia às suas convicções, no mesmo dia, seria libertado e retornaria para o aconchego de sua família.

A postura íntima mantida por Franz foi algo inimaginável para o comum dos mortais. Manteve uma correspondência frequente com sua esposa e, nas inúmeras cartas que lhe enviou, nunca lhe falou das torturas que sofria, escrevendo laudas poéticas e louvando seu amor por ela e pela família. Questionava Deus por não compreender o porquê de tanta maldade humana, porém, sem jamais se revoltar contra o Criador ou contra aqueles que lhe impingiam acerbos sofrimentos[2].

Finalmente, em 6 de julho de 1943, aos 36 anos, foi sentenciado à morte pelo Tribunal Militar Alemão, sob a acusação de desprezo à moral militar. Dias depois, recebe a única e última visita de sua esposa Franziska, acompanhada do sacerdote de sua cidade. Em meio a uma despedida dolorosa, ela vê sobre a tosca mesa da cela a carta de renúncia aos seus princípios, que o deixaria livre. No derradeiro abraço, banhada em lágrimas, despede-se dizendo-lhe que, por muito amá-lo, acataria com veneração qualquer que fosse a sua decisão. Um mês depois deste melancólico encontro, em 9 de agosto de 1943, morria, guilhotinado, Franz Jägerstätter.

Este cidadão comum tornou-se um símbolo de perseverança e de fiel cumprimento de seus deveres conscienciais e é a expressão máxima de um legítimo objetor de consciência.

Em um país democrático e em tempos de paz, como vivemos agora, o desfecho seria promissor para qualquer cidadão que assim o quisesse. Como exemplo, podemos citar a Constituição Federal Brasileira,que estabelece, em cláusula pétrea, a inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença[3]. Por consequência desta disposição constitucional, o serviço militar, apesar de ser obrigatório no Brasil, permite a possibilidade de serviço alternativo àqueles que alegarem imperativo de consciência, com base em crença religiosa, filosófica ou política bem fundamentada[4].

A objeção de consciência tem origem na tragédia grega Antígona, do século V a.C. O protagonista da peça se recusou a obedecer ao decreto do rei Creonte, que havia proibido o sepultamento do corpo de Polinice, que morreu em luta contra ele. Ele justifica sua objeção nas regras de direito natural que concederia a todos o direito ao sepultamento.

Há exceção ao acatamento da objeção de consciência, por parte das autoridades constituídas, quando a consequência desta ação ferir princípio legal superior. Como exemplo conhecido, temos a pretensão das testemunhas de Jeová de se eximirem de receber transfusão de sangue, por considerarem esta uma prática equivocada diante de seus preceitos religiosos. Se, pela falta de transfusão, houver a possibilidade de morte do indivíduo, o médico é autorizado a realizá-la, mesmo sem o consentimento do paciente ou de seu representante[5].

Quanto aos posicionamentos tomados, tanto pela Igreja Católica Apostólica Romana, representada pelo bispo de Linz, como pelos de Franz e Franziska, não nos cabe aqui aprovar ou reprovar. O aludido bispo, condoído naquela ocasião e prevendo o que poderia ocorrer com seu paroquiano, tentou demovê-lo de seu doloroso testemunho, informando-lhe que seu conterrâneo, o padre Franz Reinisch, fora executado dias antes, por motivo idêntico ao seu. As pesquisas históricas afirmam que, de 1938 a 1945, cerca de 2720 padres, religiosos e seminaristas foram deportados para o campo de concentração de Dachau, onde foram reunidos em pavilhões específicos. Milhares faleceram neste campo, que permanece como o maior cemitério de padres católicos do mundo[6]. Posteriormente, em 26 de outubro de 2007, a Igreja, representada pelo Papa Bento XVI, como reconhecimento da grandeza de seu gesto, emitiu uma exortação apostólica, declarando Franz Jägerstätter um mártir e o beatificando.

Constata-se, pois, que raríssimos são aqueles que enfrentam a morte para exercer a sua liberdade de consciência. Mais frequentemente, observamos que, quando alguém quer impor à força suas ideias e convicções, não terá outro resultado senão tornar aquele que se lhe subjuga alguém que agirá sempre por conveniência e se tornará praticante da hipocrisia e da falsa aparência[7].

Em última análise, diante dos meridianos ensinamentos doutrinários, sabemos que só a Deus cabe o direito de julgar a nossa consciência[8]. Quanto à situação vivenciada pelo ilustre personagem aqui retratado, diante da arbitrariedade que lhe era imposta, os Espíritos, na questão 838 de O Livro dos Espíritos,afirmam com propriedade que: “toda crença é respeitável, quando sincera e conducente à prática do bem. Condenáveis são as crenças que conduzam ao mal”. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo X, item 13, Allan Kardec, magistralmente,leva-nos a concluir que

a consciência íntima, além do mais, refuta qualquer respeito e toda submissão voluntária àquele que, estando investido de um poder qualquer, viola as leis e os princípios que está encarregado de aplicar. A única autoridade legítima aos olhos de Deus é a que se apoia no bom exemplo. É o que, igualmente, ressalta das palavras de Jesus.

Isto nos leva a concluir que razões não faltaram para esta radical tomada de posição por parte de Franz Jägerstätter. Ele e toda a sociedade de sua época ainda desconheciam os horrores do holocausto judeu, que só foi percebido, em sua real dimensão, quando as tropas aliadas invadiram os campos de concentração e as fotografias de milhões de judeus esquálidos e de cadáveres empilhados escancararam para o mundo inteiro este ato ignóbil contra as vítimas inocentes daquele insano antissemitismo. Naquele período, assaz sombrio, muitos foram coniventes ou omissos diante de tamanhas atrocidades. Esta opção pela autoimolação, assumida conscientemente por Franz Jägerstätter, tira de sobre seus ombros o peso da ignomínia que as atrocidades nazistas causaram na história da Humanidade. Vale recordar o que afirmou Jesus: “(…) é pelos frutos que se conhece a árvore” (Mt 7:16). Cabe a todos nós reviver sempre a história e recordar a firmeza de caráter de alguns personagens, com o fito de inspirar as gerações futuras para que nunca mais se repita tamanha desumanidade.


[1]VATICANO. Franz Jägerstätter, leigo (1907-1943). A Santa Sé, 2020. Disponível em: http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/ns_lit_doc_20071026_jagerstatter_po.html. Acesso em 10 de novembro de 2020.

[2]JÄGERSTÄTTER, Franz. Franz Jagerstatter: Letters and Writings from Prison. Nova York: Orbis Books, 2009.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988, art. 5o, §VI.

[4] Idem, art. 143, §1o e BRASIL. Lei 8239. Brasília: 1991.

[5] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução no 2232. Brasília: 2019.

[6] ZELLER, Guillaume. O pavilhão dos padres. São Paulo: Contexto, 2018.

[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2ª. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 837.

[8] Idem, q. 836.

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