O Espiritismo em “Grande sertão: veredas”

Daniel Salomão

A obra Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967), um dos clássicos da literatura nacional, é rica nas descrições das paisagens do sertão de Minas Gerais, dos perfis psicológicos de seus personagens, da cultura sertaneja e da religiosidade de boa parte do povo brasileiro. Seu autor, nascido em Cordisburgo, MG, formou-se médico em 1930 e, após algumas experiências profissionais, tornou-se diplomata, já em 1935. Após exercer a diplomacia em alguns países e funções correlatas no Brasil, desencarnou em 1967, aproximadamente quatro anos após ser eleito para a Academia Brasileira de Letras.[1] Não estruturado em capítulos, mas contado de forma ininterrupta, o livro é um monólogo em que Riobaldo, já experiente jagunço, narra seu passado a um interlocutor da cidade, revisita “seus temores, suas crenças e seu mundo.”[2] De difícil leitura, a obra apresenta linguagem característica da região e da época retratadas, com expressões nem sempre imediatamente reconhecidas pelo falante de língua portuguesa atual.

O aspecto religioso é notadamente importante nas reflexões do jagunço Riobaldo, personagem principal do romance. Além dos diversos trechos que atestam a importância da oração, ou “reza”, para ele, um dos momentos mais representativos da presença religiosa é o que revela o múltiplo interesse do personagem pelas diversas tradições constituintes da cultura brasileira:

Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles.[3]

 “Bebo água de todo rio”, destaca Riobaldo, do rio católico, do rio protestante e mesmo do rio espírita, o que se mostra na referência a Allan Kardec, ou, na sua expressão sertaneja, “Cardéque”. O também citado compadre Quelemém é personagem importante, espírita que orienta o jagunço em diversas questões éticas e religiosas. A presença de referências ao Espiritismo é notável em alguns trechos da obra, o que chama nossa atenção.

Em alguns momentos, Riobaldo reflete sobre o mal, sobre a maldade dos muitos com quem cruzou. Ao falar de Aleixo, “homem de maiores ruindades calmas que já se viu”, capaz de grandes barbaridades, registrou sua mudança a partir de uma experiência de sofrimento: “o Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo”. Após ter seus três filhos adoecidos e cegos, tornou-se nova pessoa.[4] Todavia, para Riobaldo, ficou a questão: a doença dos filhos seria consequência das más ações do pai? “Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!” A resposta viria de seu “instrutor” espírita:

Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo.[5]

Segundo O Livro dos Espíritos, “tendo o Espírito que passar por muitas encarnações, conclui-se que todos nós tivemos muitas existências, que teremos ainda muitas outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer na Terra, quer em outros mundos.”[6] Logo, por esse ponto de vista, compartilhado pelo compadre Quelemém, os meninos citados no trecho já viveram outras vidas, como também certo “velhinho” assassinado. O sofrimento dos meninos não teria origem nas maldades do pai, mas decorreria de ações passadas. O mesmo seria válido para o caso do idoso. Para o Espiritismo, as vicissitudes da vida

são provas impostas por Deus ou que vós mesmos escolhestes como Espírito, antes de encarnardes, para expiação das faltas cometidas em outra existência, porque jamais fica impune a infração das Leis de Deus e, sobretudo, da lei de justiça. Se não for nesta existência, será necessariamente em outra. Eis porque, aquele que vos parece justo, muitas vezes sofre. É o passado que o pune.[7]

A crueldade do menino Valtei é também explicada pelo mecanismo da reencarnação. Ainda criança, tinha prazer em matar animais e, mesmo submetido a todo tipo de castigo, não demonstrava mudança de comportamento:

Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho…[8]

Era, aparentemente, um “menino bonzinho”. Contudo, Riobaldo via apenas uma vida daquele Espírito. Segundo o Espiritismo, não conhecemos “os segredos que escondem as crianças em sua inocência. Não sabeis o que elas são, nem o que foram, nem o que serão.”[9] Toda criança, na verdade, foi adulta muitas vezes, nas diversas vidas de sua existência imortal. Mesmo ainda pequena, guarda uma bagagem incomensurável de experiências, virtudes já cultivadas e problemas éticos a corrigir.

No caso dos filhos de Aleixo, que não demonstravam nenhum comportamento cruel ou antipatia pelos pais, é possível que, reencarnados nessa nova vida sofrida, já estivessem em processo de regeneração, “melhores” moralmente que antes. Entretanto, no caso de Valtei, é possível identificar um “inimigo de morte”, vindo agora como filho do casal. Segundo o Espiritismo, pode acontecer que espíritos encarnados juntos, em família, “sejam completamente estranhos uns aos outros, divididos por antipatias igualmente anteriores, que se expressam na Terra por um mútuo antagonismo, a fim de lhes servir de provação.”[10]

Riobaldo, ainda junto a seu compadre, chega a refletir sobre a situação do ser humano, ou do Espírito, antes de seu nascimento.

A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues… Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem…[11]

Segundo Kardec, “deixando o corpo, a alma volta ao mundo dos Espíritos, de onde havia saído, para recomeçar uma nova existência material, após um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece no estado de Espírito errante.”[12] Contudo, se no mundo espiritual, os Espíritos “estão por toda parte” e “não existe nenhum lugar circunscrito ou fechado especialmente destinado a uns e a outros”, reúnem-se de acordo com sua faixa evolutiva, por simpatia.[13] Aqueles voltados ao mal, como os descritos por Riobaldo, buscam natural proximidade, o mesmo acontecendo com os interessados no bem. Além disso, ainda que, para o Espiritismo, céu e inferno sejam apenas alegorias,[14] haveria sim regiões infernais, de trevas, de sofrimento e maldade, como parece acreditar Riobaldo. Ademais, não há eternidade nas penas,[15] ao que também dá algum crédito o protagonista de Grande sertão: veredas, quando admite o retorno à vida daqueles que habitavam temporariamente o inferno (“Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos…”).

A descrição de compadre Quelemém do que ocorre nesse local também tem paralelo nas informações dadas pelos Espíritos a Allan Kardec. Na obra O céu e o inferno, o espírito Novel nos informa:

Um mortal é capaz de pressentir as torturas materiais pelos arrepios da carne, mas as vossas frágeis dores, amenizadas pela esperança, atenuadas por distrações ou mortas pelo esquecimento, não vos darão nunca a ideia das angústias de uma alma que sofre sem tréguas, sem esperança, sem arrependimento. Decorrido um tempo cuja duração não posso apreciar, invejando os eleitos cujos esplendores entrevia, detestando os Espíritos maus que me perseguiam com as suas zombarias, desprezando os homens cujas torpezas eu via, passei de profundo abatimento a uma revolta insensata.[16]

Na mensagem acima é descrito o sofrimento e a presença de outros Espíritos no local em que Novel se encontrava. Seriam esses os que demonstravam “prazer trivial” em “judiar dos outros”?[17] Também a obra psicografada por Francisco Cândido Xavier, em parte contemporânea à obra de Guimarães Rosa, apresenta descrições do umbral, região do plano espiritual popularizada pelo livro Nosso Lar, do Espírito André Luiz, com semelhanças à descrição de Riobaldo.[18] Além disso, nesta obra são também detalhadas descrições do clima e do ambiente, ainda com o destaque à sensação de fome e sede do desencarnado.

Por fim, outro trecho da obra nos remete à visão espírita, de certa forma otimista sobre o destino humano, e mais uma vez elucidativa quanto às causas do sofrimento na Terra.

Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos… Arre, nem posso figurar minha ideia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços.[19]

Mais uma vez, Riobaldo explica as dificuldades da vida como parte do processo evolutivo, sempre progressivo. Sem explicitar os motivos “espirituais” do nascimento das crianças sem braços e pernas, entende o fato a partir da chave espírita. Para a Doutrina Espírita, “as vicissitudes da vida são de duas espécies, ou, se quisermos, têm duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida.”[20] Já tendo nascido com problemas, suas causas naturalmente estariam em vidas passadas.

As referências ao Espiritismo e aos seus preceitos, apesar de relativamente frequentes no primeiro quarto da obra, desaparecem dali em diante. Contudo, é interessante como Guimarães Rosa consegue apresentar explicações de conceitos espíritas no linguajar simples do sertanejo, contextualizadas aos problemas comuns de suas vidas, no ritmo poético que caracteriza a obra. A análise espírita está na vida do doente, nas ações do criminoso, na expectativa de um futuro melhor, na meditação sobre o sentido da própria existência. O Espiritismo, já a essa época, se espalhava pelos rincões do Brasil.


[1] GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000, pp. 56 a 58.

[2] TEIXEIRA, Faustino. Riobaldo e o roteiro de Deus em Grande sertão: veredas. Revista Vida Pastoral, ano 61, n. 334, pp. 32, 2020.

[3] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 19.

[4] Idem, p. 16.

[5] Idem, p. 17.

[6] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 2ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2006, introdução, VI.

[7] Idem, q. 984.

[8] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 17.

[9] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 2ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2006, q. 385.

[10] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 1ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010, c. 14, i. 8.

[11] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 42.

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 2ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2006, introdução, VI.

[13] Idem, q. 1012.

[14] Idem, q. 1012a.

[15] Idem, q. 1006.

[16] KARDEC, Allan. O céu e o inferno. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 1ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2009, 2a p., c. 4.

[17] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 42.

[18] XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Ditado pelo espírito André Luiz. 59ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2007, c. 1 e 2.

[19] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 49.

[20] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra, 1ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010, c. 5, i. 4.

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