A árdua tarefa de afastar um integrante da reunião mediúnica

José Fernando

“Melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto.
 Quem fere por amor mostra lealdade, mas o inimigo multiplica beijos.” – Provérbios 27:5-6

A expressão popular “no começo tudo são flores” pode-se aplicar, deveras, à chegada de um novo participante em uma reunião mediúnica. O seu ingresso, frequentemente, se dá em ambiente de cordialidade, após discreta análise sobre seus pendores mediúnicos. Via de regra, o dirigente da reunião certifica-se de seus conhecimentos doutrinários, acompanha sua trajetória de estudos sistematizados, avalia sua performance de socialização por um largo tempo com os participantes da sociedade espírita a que esteja se vinculando, chegando a adentrar, ainda com mais sutileza, em certos aspectos de sua vida pessoal. Após todo este processo, o dito candidato é recebido em caloroso acolhimento e inserido amigavelmente na intimidade da reunião, abrindo espaços para que se sinta à vontade para exercitar suas faculdades medianímicas com espontaneidade, como deve ser.

Processo tranquilo este, sem perturbações e pleno de boas expectativas, afinal, é mais um companheiro que chega para comungar das bençãos de paz e de fraternidade que se espera de uma reunião cujo caráter de homogeneidade de pensamentos e vibrações é o que mais se deseja alcançar. Porém, já dizia experimentado dirigente: “colocar alguém em uma reunião mediúnica é fácil, difícil é tirar.” É sobre essa dificuldade que refletiremos a seguir, tendo como eixo central as orientações kardequianas em torno desse incômodo e, às vezes, indigesto assunto.

Razões existem para se considerar as contrariedades inerentes a esse esporádico e complexo processo. De fato, são situações traumáticas para todos os participantes da reunião e, em especial, para o dirigente, o qual é incubido de ser o articulador dessa iniciativa e aquele que terá de, pessoalmente, comunicar ao médium em desequilíbrio a decisão constrangedora de o afastar da tarefa. Vezes ocorrem em que o tarefeiro seja uma das criaturas mais queridas e respeitadas por todos, tornando esta articulação ainda mais penosa.

Antes de perscrutarmos o cerne da questão, convém atentar ao que Allan Kardec considerou como modelo de uma reunião mediúnica séria e instrutiva. Lecionou o mestre de Lyon: “uma reunião é um ser coletivo, cujas qualidades e propriedades são a resultante das de seus membros e formam como que um feixe. Ora, este feixe tanto mais força terá, quanto mais homogêneo for.”[1] Reafirma ainda o lídimo Codificador que:“(…) as condições do meio serão tanto melhores, quanto mais homogeneidade houver para o bem, mais sentimentos puros e elevados, mais desejo sincero de instrução, sem ideias preconcebidas.”[2]

Portanto, evidente está que, quando a conduta de algum participante for maculada de grave lesão à harmonia do conjunto mediúnico, mister se torna o afastamento temporário ou definitivo daquele que se tornou causa de escândalo. Infelizmente, devido à nossa ainda precária evolução, de quando em quando surgirão comportamentos dissonantes que ensejam tomadas de drásticas decisões por parte daquele que assumiu a grave responsabilidade de dirigir um trabalho de tal relevância. Podemos relacionar alguns obstáculos mais comuns: processo obsessivo pertinaz que obstaculiza o livre exercício mediúnico; mistificações frequentes por parte do medianeiro invigilante; doença física contagiosa; eventual necessidade do uso regular de uma substância psicotrópica; desobediência contumaz ao Regimento Interno da reunião ou da Instituição que escolheu para este labor, além de muitas outras delicadas circunstâncias.[3]

Frequentes desculpas são arregimentadas por certos operadores da tarefa mediúnica para se eximirem do constrangimento que tais tomadas de posição lhes acarretam. Distraídos quanto à complexidade e à grave responsabilidade de liderança que a condição de dirigente demanda, costumam transferir esta incômoda iniciativa aos mentores espirituais da reunião. Alegam que eles, mais do que nós encarnados, possuem ampla visão de todos os acontecimentos que cercam um trabalho deste jaez, tendo em vista que se encontram em privilegiada invisibilidade, enquanto nós, ainda encarcerados no escafandro grosseiro do corpo material que submerge, frequentemente, nas águas abissais das dúvidas e angústias da vida humana, estaríamos impossibilitados de enxergar, com mais profundidade, os motivos que levaram o infortunado servidor ao desequilíbrio. Justificam, comodamente, que são eles, os mentores, os verdadeiros responsáveis pelo trabalho mediúnico, cabendo ao dirigente apenas os coadjuvar nas tarefas, à feição de meros cumpridores de ordens, sem espaço para iniciativas próprias. Na prática, observa-se um costume de aguardar durante um tempo razoável, sem grandes prejuízos para o trabalho, um posicionamento por parte da Espiritualidade. Porém, se não ocorreu manifestação espontânea por parte do mentor espiritual é porque cabe aos encarnados decidirem a questão. Entende-se que os mentores estejam disponibilizando aos frequentadores da reunião valiosa oportunidade de aprendizado, como também o ensejo de testarem sua fidelidade ao interesse coletivo, sem preferências individuais.

Hermínio Miranda, no entanto, no livro “Diálogo com as Sombras”, afirma, categoricamente, que os benfeitores espirituais não são responsáveis pela admissão ou afastamento de qualquer integrante do grupo mediúnico.[4] Dizem outros seareiros, ciosos da índole caritativa dos encontros mediúnicos, que são os doentes que necessitam de médico. Justificam, alguns deles, que Jesus, guia e modelo da humanidade, manteve em seu grupo apostolar o discípulo Judas Iscariotes, mesmo tendo ciência de suas pretensões de poder mundano e de sua acalentada disposição de atingir o ápice do domínio sobre os romanos invasores a qualquer custo e, se necessário, até mesmo usando da traição ao seu amado mestre e mentor, o que, de fato, ocorreu.

Àqueles, portanto, que temem ferir o princípio honorável e excludente, taxativamente afirmado por Allan Kardec de que, “fora da caridade não há salvação”[5], cabe uma reflexão sobre a personalidade de Jesus. Celso, polêmico filósofo grego e renomado historiador do final do século II d.C., grande estudioso das origens do Cristianismo, refletindo sobre algumas específicas passagens de Jesus, asseverou ter sido ele, uma criatura de personalidade irada e enraivecida, o que jamais será condizente com a Verdade.[6] Por outro lado, parte da humanidade, ainda carente de evolução, confere ao mestre o epíteto de “bom”, que, amiúde, nos remete à ideia de “bonzinho”, termo que traz em seu bojo uma conotação de servilismo e displicência. Adjetivos tais são incompatíveis com a magnanimidade e firmeza de caráter do Cristo, patenteadas em todos os atos de sua sublime e breve trajetória na Terra.

Jesus sequer aceitou o título de “bom”, mesmo com as implicações benéficas do termo, como se conclui na passagem em que contestou a fala de um importante homem asseverando, enfaticamente: “Por que me chamas de bom? Ninguém há bom, senão um, que é Deus” (Mt 19:16-17). Comprova-nos, assim, que a sua benevolência tem uma expressividade que extrapola a noção de bondade inerente à nossa capacidade de compreensão. Felizmente, a humanidade vem, cada vez mais, solidificando o entendimento de que Jesus, o Cristo de Deus, em sua mansuetude e em seu ilimitado amor pela humanidade, testemunhou, em atos de extremos sacrifícios, a sua grandeza, em doses perfeitamente harmônicas, conjugando energia e amor jamais vistos. Ao manter em seu círculo o discípulo que o trairia, fê-lo ciente de que teria estofo moral para lidar com a situação. Na verdade, a presença de Judas não afetaria em nada o trabalho da coletividade apostólica e atenderia ao cumprimento da Antiga Lei, as chamadas profecias, “(…) considerando que Jesus queria cumprir o que estava escrito: Porque bem sabia Ele quem o havia de trair; por isso disse: Nem todos estais limpos” (Zc 11:12).

 O Espírito São Luiz, na obra O Evangelho segundo o Espiritismo,responde a uma questão formulada por Allan Kardec, na qual fica evidente o respeito à hegemonia da coletividade, em detrimento à imposição do individualismo separatista. Na mesma questão, Luiz, o Santo da Igreja, também destaca a ideia de caridade bem compreendida. Esclarece que, quando as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, não haveria utilidade em divulgá-la, no entanto, se podem acarretar prejuízo a terceiros, urge que se atenda ao interesse do maior número. No caso em análise, não seria a questão de divulgar e, sim, agir para o bem de todos, mantendo a coesão e harmonia do conjunto. Ele deixa evidente ainda que, “segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas.”[7]

Aos mais receosos de tomarem atitudes um pouco draconianas, vale destacar que Allan Kardec, nos capítulos finais de O Livro dos Médiuns, nos deixa relevante orientação, em termos incisivos, assim proferidas: “pode-se, pois, estatuir como princípio que todo aquele que numa reunião espírita provoca desordem, ou desunião, ostensiva ou sub-repticiamente, por quaisquer meios, é, ou um agente provocador, ou, pelo menos, um mau espírita, do qual cumpre que os outros se livrem o mais depressa possível.”[8]

Evidente está que uma tomada de posição assim não pode ser de inopino. Há que ser cuidadosa e fundamentada pela caridade. O dirigente responsável, antes de qualquer atitude, deverá se alicerçar em fervorosa oração, analisar os prós e os contras, cotejar informações com discrição, para amealhar um completo domínio do panorama emocional a que se verá envolvido. André Luiz, nas qualificações sugeridas para um bom dirigente, enuncia a autoridade fundamentada no exemplo, a dignidade e o respeito para com todos, a afeição sem privilégios, a brandura e a firmeza, dentre outras.[9] Qualificativos estes de extrema necessidade para o caso em questão.

Paulo de Tarso, em sua consagrada primeira carta a Timóteo, ensina-nos a mesclar energia e amor em nossas reprimendas, assim se expressando: “Não repreendas asperamente o ancião, mas admoesta-o como a um pai; aos moços como a irmãos; às mulheres idosas como a mães, às moças como a irmãs, em toda a pureza” (1Tm 5:1-2).


[1] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 29, i. 331.

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 21, i. 233.

[3] CFN/FEB. Orientação para a prática mediúnica no centro espírita. Brasília: FEB, 2017, c. 6.

[4] MIRANDA, Hermínio Correia de. Diálogo com as sombras: teoria e prática. 24a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2009, 2a p., c. 7.

[5] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 15, i. 8 e 9.

[6] CELSO. Contra os cristãos. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2004.

[7] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 10, i. 21.

[8] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 29, i. 337.

[9] XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Desobsessão. Pelo Espírito André Luiz. 10a, Rio de Janeiro: FEB, 1989, c. 13.

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