Kardec em prece: cinco cartas aos Espíritos

Coluna Com Afeto, Kardec

Fábio Fortes

Pela prece podemos fazer três coisas: louvar, pedir e agradecer.” Com essas palavras, os Espíritos definem o caráter geral da prece, em resposta à questão 659 de O Livro dos Espíritos. O tema aflora na Codificação Espírita mais do que como uma reflexão teórica, mas se apresenta também a partir de seus efeitos práticos: pela prece nos colocamos em comunicação com os Espíritos benfeitores e, por seu intermédio, podemos obter respostas para os dilemas materiais e morais da vida. Aliás, é em virtude do benefício de sua prática que Kardec incluiu em O Evangelho segundo o Espiritismo uma coletânea de preces que ainda servem de modelo para o espírita, embora saibamos que “é sempre preferível a prece ditada do íntimo que a prece lida”, como nos esclarece a resposta à questão 658 de O Livro dos Espíritos. A prece mais eficaz é, portanto, aquela que revela nossa intenção, nosso sentimento, nosso gesto de aproximação do Criador; ela é um signo de nossa humanidade.

Se considerarmos como balizas a publicação de O Livro dos Espíritos, em 1857, e a desencarnação de Kardec, em 1869, temos doze anos de intenso trabalho do Codificador em prol da Doutrina Espírita. Ao longo desse período, não foram raros os momentos de dificuldade, de abnegação e de extrema dedicação que lhe foram exigidos, como tivemos ocasião de avaliar nos últimos artigos desta coluna. Perpassa todos esses momentos, entretanto, uma firme convicção na supervisão dos Espíritos superiores, com quem Kardec manteve estreito diálogo em inúmeras ocasiões.

Temos uma amostra dessa experiência no Projeto Allan Kardec, que traz a lume, até o momento, cinco preces autênticas do Codificador, que espelham o seu estado de ânimo em diferentes circunstâncias de sua trajetória: duas preces datadas de 1857, duas de 1860 e uma de 1866. Lidas em conjunto, reafirmam a absoluta confiança nos Espíritos superiores, revelam uma clareza quanto à missão a ser desenvolvida e rogam por proteção contra as dificuldades internas e externas que ameaçavam a continuidade do trabalho.

Na prece de 1857, é pungente o pedido dirigido aos Espíritos para que lhe concedessem os meios necessários para a conclusão do trabalho recém-iniciado: “Venho vos pedir, Senhor, que me concedais uma graça a mais, a de poder completar minha obra, colocando-me em condições de executar o plano que concebi, se o julgais útil.” Em meio a tantas ocupações, Kardec vislumbrava, naquela ocasião, a possibilidade de se dedicar exclusivamente ao projeto traçado por ele em conjunto com os guias:

os Espíritos me disseram: quem quer o fim, quer os meios; ora, nós queremos o fim, portanto, também queremos os meios. Essas palavras me levam a esperar que está em vossos desígnios supremos me fornecer os meios que me faltam para chegar ao fim; eis por que junto a minha voz à deles, para vos suplicar a apressar o momento em que poderei me entregar sem reservas e sem entraves aos trabalhos que devem completar a obra que empreendi.

No mesmo ano, outra prece registra o desejo de que lhe fossem providas as condições materiais para o prosseguimento do trabalho doutrinário. Além da confiança que Kardec parece depositar na espiritualidade, essa súplica evidencia também as constantes inquietações de ordem material com que ele lidou ao longo de sua vida. Kardec roga que lhe seja facultada uma fortaleza moral, para que seu exemplo jamais viesse em desfavor da Doutrina por seu meio revelada: “Dai-me o tato necessário para evitar, na minha conduta, tudo aquilo que poderia prejudicar minha própria estima e jogar no descrédito a doutrina, desacreditando moralmente aquele que a deve promulgar.” Nesse mesmo sentido, é revelador de sua humanidade o pedido de que os Espíritos não lhe deixassem desanimar diante das dificuldades: “Dai-me a força necessária para que eu não me desencoraje pelos obstáculos e decepções que encontrarei no meu caminho.”

Assim, embora Espírito de notável fortaleza moral, Kardec não deixava de ser tocado pelas questões do dia a dia que lhe afetavam o ânimo e, consequentemente, o trabalho, como vemos na prece que dirige ao Espírito da Verdade, em 1860:

Estou hoje num estado detestável; a que isso se deve? Ignoro. Contrariado o dia todo e, por conseguinte, de mau humor. Se é minha falta, dai-me, eu vos peço, a força de apartar a causa; se é uma má influência, dai-me a força para a repelir; se é uma prova, que ela sirva a minha humildade; se é para a instrução, dai-me a luz necessária para descobri-la.

Essa prece não somente é um testemunho dos altos e baixos que, provavelmente, ocorrem até mesmo a Espíritos da elevação de Kardec, mas é, sobretudo, um exemplo de vigilância, que se concretiza no seu gesto de se dirigir ao seu protetor. Nesse quadro, Kardec recorre ao seu guia para modificar seu estado mental, sendo, portanto, o agente de seu próprio processo de cura. No mesmo ano, temos uma amostra das dificuldades exteriores que Kardec enfrentava, para o que ele também clama por auxílio: “Os testemunhos de satisfação que recebo de fora e a certeza de haver realizado algum bem são para mim uma recompensa que eu vos agradeço; mas essa alegria é temperada, em parte, pelos sentimentos de inveja e de malevolência que se agitam ao meu redor.”

Em tom mais grave e solene, a prece de 1866 parece discutir o próprio futuro da Doutrina Espírita. Kardec a inicia fazendo uma afirmativa que merece uma reflexão mais profunda: “Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista, que é sua constituição em religião, mais eu sinto minhas ideias se aclararem e o plano se delinear.” É verdade que, com a publicação de O Evangelho segundo o Espiritismo, em 1864, as consequências da filosofia espírita para a questão religiosa se tornaram evidentes. Nesse contexto, Kardec parece, então, admitir que o aspecto religioso seria uma espécie de corolário do edifício doutrinário, tese que demandaria, contudo, um estudo mais aprofundado: “porém, mais também eu sinto quanto esse trabalho exige calma e meditações sérias.”

Se, no entanto, por “religião” entendermos, como a etimologia da palavra diz, “religação”, e se, além disso, esse movimento se conceber por meio de uma forma de comunicação, as preces de Kardec representam notável exemplo da dimensão religiosa da Doutrina Espírita e revelam que esse aspecto não foi jamais negligenciado na prática do Codificador. A religião, não no sentido institucional do termo, mas em sua essência, poderia ser, nesse sentido, considerada o ponto mais elevado da Doutrina Espírita, visto que ela nos permitiria estar em comunhão uns com os outros – Espíritos encarnados e desencarnados – e com o Criador.

***

Encerrando nossa coluna sobre o Projeto Allan Kardec (https://projetokardec.ufjf.br/), esperamos ter suscitado o interesse dos nossos irmãos leitores de O Médium por esse riquíssimo repertório de testemunhos acerca do incansável e valoroso trabalho de Allan Kardec. Que esses breves apontamentos possam ser nossa modesta homenagem ao nosso mestre, nesses 164 anos da Doutrina dos Espíritos.

Referências

KARDEC, Allan. [Prece – 1857 [1]]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=32. Acesso em: 3 Nov 2021. Projeto Allan Kardec.

KARDEC, Allan. [Prece – 1857 [4]]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=34. Acesso em: 3 Nov 2021. Projeto Allan Kardec.

KARDEC, Allan. [Prece]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=40. Acesso em: 3 Nov 2021. Projeto Allan Kardec.

KARDEC, Allan. [Prece]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=38. Acesso em: 3 Nov 2021. Projeto Allan Kardec.

KARDEC, Allan. [Prece de Allan Kardec]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=179. Acesso em: 3 Nov 2021. Projeto Allan Kardec.

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *