Léthê, o Rio do Esquecimento

José Fernando

Chegam-me sempre à memória trechos da melodia “Detalhes” de Roberto Carlos, cantada alegremente por meu querido e velho amigo, ao chuveiro, se preparando para o próximo encontro com sua encantadora namorada. Mostrava-se especialmente eufórico com a chegada do fim de semana, na expectativa de reencontrá-la em viagem rápida à cidade vizinha onde ela residia.

Embora a sua acentuada timidez, conseguiu conquistá-la e emplacou abençoado casamento que perdura até os dias de hoje, com sua companheira abnegada e extremamente amorosa, verdadeiro sustentáculo das horas difíceis de suas vidas.

De espírito romântico suportava estoicamente o barulhento “rock” que era obrigado a ouvir em companhia deste, à época, adolescente contestador. De vez em quando, acrescentava ao seu repertório de chuveiro, o único rock que conseguiu cantarolar, a famosa “Stairway to Heaven”, da banda Led Zeppelin, que na realidade, está mais para balada de rock, bem suave. Sempre cordato e compreensível, teve dificuldade em aceitar a opção religiosa de sua amada esposa que se bandeou para uma agremiação evangélica, a qual segue com poderosa força de fé. Vale ressaltar que, se as instituições evangélicas promovessem a canonização de seus adeptos, à semelhança da Igreja Católica, na certa ela receberia o epíteto de “santa”, tal é a sua abnegação e verve de legítima seguidora dos ensinamentos do Mestre Jesus.

Ele, católico fervoroso, tinha até certa simpatia com o Espiritismo e, em variadas ocasiões, participava de atividades comuns com os espíritas da cidade, nas campanhas de caridade promovidas pelos “Vicentinos” e nunca se incomodou com a conversão de alguns companheiros às lides Espiritistas. Cidadão probo, funcionário público cumpridor de seus deveres gozava de excelente saúde a ponto de seu médico receitar, expressamente, que ele ingerisse, de vez em quando, alguma porçãozinha de torresmo, o que causava risos dele quando ligávamos e brincando, pedíamos o nome e telefone do seu médico.

Mas, implacável, o tempo passou.

Visitou-nos, certa vez, e causou-nos estranheza, dada sua costumeira circunspecção, a sua exagerada disposição em cantar, desinibidamente, seguindo letras do computador, canções de todos os ritmos. Posteriormente ao encontrá-lo em sua residência, um pouco antes da pandemia do Coronavírus algo de inusitado havia em seu olhar. Conversava conosco, mas sua expressão facial denotava um certo distanciamento. Alegava um pouco de dificuldade de memória e recorria à sua esposa para recordar-se de nomes e fatos que vivenciaram em comum.

Transcorridos mais alguns anos já não entabulava uma prosa até o seu final, mantendo sempre no semblante um sorriso indefinido, quase melancólico. Hoje, está presente fisicamente entre nós, mas, o ser inteligente, lúcido, alegre e feliz parece ter se recolhido, não se sabe como, em um mundo próprio, inexpugnável, individual e invisível aos olhos e ao coração.

Como já se aguardava, angustiadamente, nosso predileto amigo foi diagnosticado ser portador da Doença de Alzheimer (DA) que, consoante a definição médica (1) é “um transtorno neurodegenerativo progressivo e fatal que se manifesta pela deterioração cognitiva e da memória, comprometimento progressivo das atividades de vida diária e uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos e de alterações comportamentais.” De causa oficialmente desconhecida, a Medicina, ainda carente de confirmações científicas conclusivas, afirma que a DA possa ser de origem geneticamente determinada.

Exatamente neste ponto específico da interferência genética na gênese do Mal de Alzheimer é que nos cabe pesquisar, na fonte inesgotável da nossa incorruptível e atemporal Doutrina Espírita. Nela encontramos a preciosa chave que abre as portas veladas de nossas inumeráveis reencarnações e nos mostra as consequências, muitas vezes desastrosas, de nossas escolhas no transcorrer dos milênios.

Os sábios Espíritos que descerraram as pesadas cortinas da ignorância da vida post mortem também revelaram a Allan Kardec a valiosa chave que abre as portas do conhecimento infinito descortinando, com racionalidade, antigas teorias acerca do corpo espiritual ou corpo astral para nós, o perispírito. (2) Em “Obras Póstumas” ele nos deixou registrado que: “Sendo um dos elementos constitutivos do homem, o perispírito desempenha importante papel em todos os fenômenos psicológicos e, até certo ponto, nos fenômenos fisiológicos e patológicos.” Enfatiza Kardec:

“Quando as ciências médicas tiverem na devida conta o elemento espiritual na economia do ser, terão dado grande passo e horizontes inteiramente novos se lhes patentearão. As causas de muitas moléstias serão a esse tempo descobertas e encontrados poderosos meios de combatê-las.”

(3) Carlos Juliano Torres Pastorinho, estudioso dos fenômenos mediúnicos e escritor profícuo leciona que no DNA vamos, diariamente, numa vida, gravando o que nos ocorrerá na vida seguinte. É a construção lenta, mas segura, de acontecimentos infalíveis e inevitáveis. Morre o corpo material e com ele o DNA físico, porém, o correspondente espiritual ao DNA, que se pode chamar de “genótipo espiritual” não se extingue permanecendo no perispírito, o qual irá moldar o corpo físico da próxima reencarnação, corpo este que sofrerá influência do meio físico e social, os chamados fenótipos.(4) Da mesma forma, os atos, palavras, sentimentos e pensamentos nossos provocam reações hormonais com alterações químicas que conseguem influir na estrutura do DNA modificando lhe os códigos genéticos, e aí gravando marcas indeléveis que determinarão, no futuro, nossa felicidade ou nossa desdita pois, como afirmou o Apóstolo da Gentilidade: “… aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gal. 6: 7).

A fertilíssima imaginação do escritor colombiano Gabriel Garcia Marques nos conduz a um paralelo imaginativo com os melancólicos sintomas desta grave enfermidade. (5) Em seu aclamado livro “Cem Anos de Solidão” ele descreve a saga da família Buendia. O patriarca Arcádio Buendia funda uma fictícia cidade, “Macondo”, na qual seus descendentes sobreviverão por um século e vivenciarão estranhos e também divertidos fatos ficcionais.

Inexplicavelmente, em dado momento, chega à cidade a jovem Rebeca, a quem Arcádio adota como filha. Por desgraça, com ela também chega a epidemia de esquecimento, causada pela epidemia de insôniaA perda de memória obriga os habitantes a criarem um método para lembrar das coisas e José Arcadio Buendía passa a etiquetar todos os objetos para recordar seus nomes; entretanto, esse método começa a falhar quando as pessoas também se esquecem de ler.

Seguindo este mesmo “script”, de anotar o nome dos objetos que toca, a consagrada atriz Julianne Moore, interpreta uma professora de Linguística em Harvard que, precocemente, aos 50 anos, foi diagnosticada com DA. Este emocionante filme “Para Sempre Alice”, dentre seus erros e acertos, rendeu-lhe um Oscar em 2015 e se tornou referência de como proceder ou do que não se deve fazer com um paciente de Alzheimer.

(6) Consoante a sua vivência profissional a Dra. Ana Paula Soares, em seu artigo “Alzheimer: Um Aprendizado para o Espírito”, relata a grande diferença entre aqueles doentes que são tratados somente por cuidadores profissionais e aqueloutros que recebem, concomitantemente, o acompanhamento familiar. Segundo a autora, o amor, a paciência e o carinho da família são lenitivos que abrandam os acerbos sintomas da doença, tornando seus portadores mais dóceis e afáveis facilitando assim o trabalho árduo dos cuidadores.

Por hoje nosso querido amigo, mencionado no início, ainda segue aprisionado em seu mundo íntimo, mas tem mantido sempre um sorriso, às vezes caricatural, porém com expressão facial serena, aparentando certa tranquilidade interior. Aventamos a hipótese de que a dedicação da esposa e o carinho dos filhos marcando presença constante em seu cotidiano possam estar contribuindo para amenizar a gravidade dos sintomas dessa cruel enfermidade. Talvez, por seus méritos e de seus familiares na presente reencarnação, tenham eles conquistado o direito de passar pela acerba expiação de débitos coletivos, contraídos em vidas que se perdem na poeira dos tempos, de forma bem menos agressiva do que a maioria dos doentes algemados aos grilhões sufocantes da Alzheimer.

Concluindo, numa despretensiosa paráfrase, acorre-nos à memória uma peculiar narrativa de Dante Alighieri inclusa .na segunda parte de sua portentosa e universal obra “A Divina Comédia”. Dante faz uma incursão ao chamado “Purgatório” e nos descreve Lethe, o Rio do Esquecimento. Narra que este rio corre através da planície de Lethe passando por Hypnos. Por causa disso, o Rio Lethe está associado ao deus grego do sono. À medida que fluía ao redor da caverna, produzia sons suaves e murmurantes provocando sonolência e torpor aos que para lá eram encaminhados. Neste opressivo ambiente do “Purgatório” os pecadores, já fustigados pelos castigos purificadores, tinham de beber de suas águas para apagar da memória os pecados cometidos e, assim, finalmente, serem dignos de adentrar o “Paraíso”.

Terá nosso amigo bebido das águas do Rio Lethe? – Assim queira Deus!!

  1. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/a/alzheimer
  2. KARDEC, Allan – “Obras Póstumas” Primeira Parte – §1º- item 12 – pag.40- FEB – Editora -12ª edição.
  3. PASTORINO, Carlos Torres – Livro “Técnica da Mediunidade” Ed. Sabedoria- 2ª edição- Rio.
  4. PASTORINO, Torres – “Espiritismo e Genética” Cap. 4 item 2 – pag. 54 -Reencarnação e DNA.
  5. MARQUES, Gabriel Garcia – livro “Cem Anos de Solidão” – Ed. Record- Rio – abril 1977
  6. .http://cavile.com.br/Alzheimer-um-aprendizado-para-o-espirito/.
  7. ALIGHIERI, Dante- Livro “A Divina Comédia” -Segunda Parte – “Purgatório” Tradução: João Ziller-Ed. Vega (1978).

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