Divulgação das comunicações mediúnicas

Daniel Salomão Silva

Na edição de janeiro de 1862 da Revista Espírita, Allan Kardec trouxe importante observação sobre a publicidade das comunicações mediúnicas, que julgamos merecer atenção ainda nos dias de hoje. Para ele, entendendo que os Espíritos têm por objetivo “a instrução geral, a propagação dos princípios da Doutrina”, nada seria obtido se suas comunicações ficassem escondidas “nas pastas dos que as recebem”. Apenas sua divulgação daria chance a que a concordância dos ensinos dos Espíritos fosse avaliada e a que entendimentos errôneos fossem neutralizados.i

Nessa proposta estava a base para o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, metodologia apresentada pelo Codificador em 1864 em O Evangelho segundo o Espiritismo. Compreendendo que, tanto no plano espiritual quanto no material, há uma vasta gradação entre a sabedoria e a ignorância, a prudência nunca seria excessiva diante das informações provenientes dos desencarnados. As instruções recebidas mediunicamente não poderiam ser aceitas sem qualquer critério, mas deveriam passar por dois crivos antes de serem admitidas como seguras. Afinal,

(…) com relação a tudo o que esteja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade, que devem ser consideradas como opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que seria imprudente aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.ii

Sem o pré-julgamento de qualquer médium ou Espírito comunicante, mas atento à mensagem, Kardec propôs como primeiro controle “o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos”.iii O Codificador já havia abordado brevemente, em instruções dadas a grupos espíritas durante suas viagens, anos antes, o que seria um bom uso da razão na escolha do quê e do como se publicar. Em primeiro lugar, não seriam atraentes ao público as mensagens que “só interessam àqueles que as recebem” ou que apenas “têm interesse pelas circunstâncias nas quais foram dadas, e sem o conhecimento das quais são insignificantes”. Ademais, uma análise racional deveria identificar as que contêm “coisas absurdas ou triviais”, “sistemas excêntricos” ou “grosseiras heresias científicas” e só publicá-las acompanhadas de comentários, refutando seus erros ou destacando-as como opiniões individuais, o que teria um aspecto instrutivo. Entretanto, seria conveniente a exclusão das que pudessem, por uma causa qualquer, produzir “má impressão”.iv

De qualquer forma, se a publicação de excentricidades, espalhadas por centenas de obras, foi e é um dos inconvenientes do Movimento Espírita, segundo o próprio Codificador deveríamos abençoá-las, “porquanto é por esses próprios excessos que o erro se perde”.v Não precisamos temer o que é publicado em nome do Espiritismo, pois a análise criteriosa e o tempo expurgarão o que não enriquece.

Essa primeira e permanente etapa, o controle da razão, deveria ser complementada, porém, pelo segundo crivo do método kardequiano, o da verificação de conformidade entre as informações fornecidas pelos desencarnados. Segundo Kardec, “a única garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares”.vi Logo, se os grupos espíritas podem e devem fazer uma análise profunda das mensagens recebidas em suas reuniões, apenas o Movimento Espírita,vii pela multiplicidade de seus membros, centros e captações mediúnicas, pode concluir ou não pela concordância universal. Daí a necessidade de divulgação responsável dessas comunicações.

Com essa preocupação, Kardec, ainda em 1862, examinou diferentes possibilidades de publicidade. Preferindo publicações não periódicas, livres da demanda de “produção” constante de material e de despesas regulares, entendeu que “uma sociedade, um grupo, os grupos de uma mesma cidade poderiam (…) reunir suas comunicações em brochuras independentes umas das outras e publicadas em datas indeterminadas”.viii Da mesma forma, publicações isoladas de um único médium também poderiam ocorrer, ainda que com risco de serem monótonas por apresentarem certa uniformidade. Contudo, também seriam atraentes se, “tratando de um determinado assunto, formassem um todo e apresentassem um conjunto, quer fossem obra de um só Espírito, quer de vários”. Interessante é a posterior popularização dessa prática no meio espírita.

Nessa direção, o próprio Kardec aprovou e apoiou uma iniciativa contemporânea de publicação de uma coleção de trabalhos mediúnicos de diferentes centros espíritas. Da sua parte forneceria, sem nenhum interesse financeiro ou de benefício pessoal, volumes de comunicações oriundas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e de outros grupos, acompanhados de comentários de própria autoria.ix

Logo, em alinhamento à postura kardequiana, duas posturas extremas devem ser evitadas: tanto a aceitação indiscriminada de tudo o que é admitido como mediúnico, quanto a rejeição de todo trabalho psicográfico mais recente. Sustentam essa última posição os argumentos de que tudo estaria concluído na Codificação Espírita ou de que apenas alguns médiuns, já consagrados, teriam autorização para publicar seus escritos. Nada mais contrário ao pensamento e à proposta do Codificador, que nunca colocou ninguém ou a si mesmo como o único apto a lidar com o fenômeno mediúnico, nem pretendeu ter em sua obra o esgotamento do assunto. Ao nos legar O Livro dos Médiuns, buscou reunir orientações para os que desejassem, de modo igualmente sério, lidar com a mediunidade.x Além disso, no momento mais maduro de seu conhecimento espírita, afirmou que o Espiritismo “caminha de par com o progresso” e “jamais será ultrapassado”, pois, “se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria neste ponto”.xi Logo, a Doutrina Espírita não pode estar concluída, pois é progressiva.

Quanto aos médiuns já renomados, entendemos que os mesmos métodos devem ser aplicados às suas psicografias, incondicionalmente, visto que seria de uma imensa falta de caridade para com eles e para com o Movimento Espírita isentar seus escritos, de grande penetração e aceitação, de qualquer cuidado. Da mesma forma, não devem ser condenados por publicarem livros que, no entendimento de alguns indivíduos, não exibem a mesma “qualidade” de obras anteriores. Se eles e as equipes de suas casas espíritas e editoras analisaram seriamente seus textos, cabe ao Movimento Espírita, como um todo, verificar a médio e longo prazo sua racionalidade e sua concordância com outras psicografias: assim é construído o conhecimento espírita.

Enfim, não devemos temer a mediunidade nos dias de hoje, pois nunca tivemos tanto à disposição para acolhê-la com segurança. O ponto em que queremos chegar é que não há Controle Universal do Ensino dos Espíritos se esses ensinos não forem publicados. Afinal, não é possível verificar concordâncias em mensagens que não são lidas nem divulgadas responsavelmente.

i KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano V, 1862 (janeiro). Catanduva, SP: Edicel, 2016, p. 17.
ii KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, introdução, II.
iii Idem.
iv KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Allan Kardec. Rio de Janeiro: FEB, 2005, Instruções particulares…, VI.
v Idem
vi KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, introdução, II.
vii Aqui entendemos a expressão “Movimento Espírita” não apenas em seu aspecto federativo, de grande valor, mas referindo-se amplamente aos espíritas e suas associações.
viii KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano V, 1862 (janeiro). Catanduva, SP: Edicel, 2016, p. 18.
ix Idem, p. 19.
x KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, introdução.
xi KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 1, i. 55.

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