O Auto de Fé de Barcelona e o poder transformador do livro

José Fernando

Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo.
Que ela seja para vós um dia de festa e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!” – Allan Kardec – (R.E. Novembro 1861)

O turista que chega hoje a Barcelona, capital da comunidade autônoma da Catalunha, Espanha, há de se encantar com as belezas desta metrópole moderna, liberal, culta, esfuziante de belezas naturais e de impressionantes obras arquitetônicas. As catedrais projetadas pelo famoso arquiteto espanhol Antoni Gaudí, em seu curioso estilo – um mixto de mourisco (de influência árabe) e neogótico –, espalhadas pela cidade, deslumbram a todos os excursionistas. O privilegiado viajante poderá transitar, despretensiosamente, pelas vias e alamedas do antigo centro da capital, atualmente Parc de La Ciutadella. Em seu recinto, situa-se o zoológico municipal, ocupando metade de seu espaço, e o restante, projetado desde 1870, transformado em extensos jardins com suas alamedas monumentais e seus passeios e belas aleias que nos inspiram enlevos românticos e aprazíveis ao apreciar a exuberante variedade de árvores e flores em sua multifacetada cromaticidade.

Não era bem assim lá pelos idos de 1861. Naquele espaço, erigia-se, desde 1715, a sombria fortaleza construída por ordem de Felipe V no final da inglória “Guerra de Sucessão”, que ceifou vidas de franceses usurpadores e dos próprios espanhóis integrantes das casas aristocráticas que lutavam pela herança do trono real da Espanha, após a morte do rei Carlos II em 1700. Seus canhões ora se voltavam para o mar afundando navios franceses invasores, ora para a própria cidade, destruindo casas e chacinando indefesos barceloneses. Neste lúgubre ambiente, profundamente marcado por trágicos acontecimentos, erigia-se um grande paço central ladeado por ruas tortuosas que propiciavam a frequência diária de comerciantes e fregueses que ali se acotovelavam e desfrutavam de seu enorme espaço para o livre comércio, mesclando malabaristas, cantores e musicistas, como uma larga praça de comércio e entretenimentos.

A imensa esplanada, que também servia de local para a execução de prisioneiros flagrados em crimes irrecorríveis, povoada pela presença constante da soldadesca que defendia a fortaleza e de bêbados perambulantes, mantinha no local uma atmosfera pesada e fria.

Foi nesse obscuro ambiente que, em 9 de outubro de 1861, em gélida e cinzenta manhã, ocorreu significativo acontecimento que marcaria o Movimento Espírita para sempre. Um grande número de adeptos da nova Doutrina dos Espíritos, misturados ao povaréu ansioso por espetáculos dantescos, ali permanecia de corações opressos, pois, por ordem do bispo de Barcelona, Antonio Palau y Termens, foram espalhados proclamas pelos muros e igrejas da cidade avisando que, às dez horas e meia da manhã, teria início o Auto de Fé contra a “satânica ideologia dos espíritas”. Anunciavam que seriam incinerados os livros recentemente chegados de Paris, arbitrariamente confiscados pela aduana local, pelo motivo de conterem ensinamentos heréticos que fundamentavam a crença espírita, considerada contrária aos ensinamentos da “santa” Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

A cerimônia protocolar iniciou com a presença do bispo com hábitos cerimoniais, portando, a cruz numa mão e a tocha na outra. Ao seu lado, um escrevente de notário, um empregado superior da alfândega, um agente representando o livreiro e três moços serventes, encarregados de manter o fogo. Após a leitura do proclama, foi ateado fogo em 300 volumes e folhetos espíritas e, antes mesmo que as chamas se apagassem, o sacerdote e seus ajudantes se retiraram sob apupos e xingamentos de numerosos assistentes que bradavam exaltados: “abaixo à Inquisição!”. Os jornais espanhóis escancararam em suas manchetes o nefasto acontecimento, se dividindo entre aqueles tradicionalistas que apoiavam a Igreja e outros liberais que condenavam o infame ato.

Allan Kardec1 exprobou o aludido fato em artigo que denominou “Resquícios da Idade Média”. Destacou a profunda arbitrariedade da Igreja local, que nem mesmo permitiu a devolução das obras ao livreiro, alegando, despoticamente, que “a Igreja Católica é universal, e sendo estes livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham perverter a moral e a religião de outros países”.

Ainda segundo Kardec, “(…) várias pessoas se aproximaram da fogueira e recolheram as suas cinzas. Uma parte das cinzas nos foi enviada. Ali se encontrava um fragmento de O Livro dos Espíritos, consumido pela metade. Nós o conservamos preciosamente como autêntico”. A despeito desse respeitoso zelo, a relíquia não resistiu aos desmandos dos homens, não chegando à nossa atualidade. O fragmento e demais obras doutrinárias originais foram implacavelmente destruídos pelos sicários nazistas durante a tomada da cidade de Paris no início da Segunda Grande Guerra Mundial, logo após a invasão da Polônia pelas tropas do Terceiro Reich.

O Codificador, atendendo à sugestão do Alto, absteve-se de recorrer à lei dos homens para reivindicar a indenização dos danos pecuniários causados, sendo informado, por via mediúnica, de que o absurdo do ato praticado iria ocasionar uma imensa curiosidade por parte dos espanhóis e se tornaria excelente meio de propagação da Doutrina. Dito e feito. O número de adeptos do Espiritismo aumentou consideravelmente na Espanha e em demais países da Europa dias após a consumação do Auto de Barcelona.2

Interessante ressaltar que, em comunicação do próprio bispo Antonio Palau Y Termens, desencarnado em 9 de julho de 1862, ocorrida meses depois, ele, já esclarecido de seu ato desprezível, e profundamente arrependido, avisou aos espíritas catalães que tivessem grande confiança no sucesso da disseminação da propaganda da Doutrina. Comunicou ainda “(…) que os pontos nos quais teve lugar o Auto de Fé desapareceriam rapidamente e, em seu posto, seriam cultivados jardins para o recreio de todos e para apagar, de certo modo, as tristes lembranças que existiam desse lugar, no qual se levantava uma fortaleza cheia de canhões.” De fato, em 1888, Barcelona sediou uma exposição universal naquele mesmo lugar, totalmente renovado, como se pode ver ainda hoje.

Desde priscas eras, a história registra em seus anais fatos de destruição de livros com a finalidade de aniquilar novas ideias que vão surgindo e incomodando oportunistas do poder mundano.3 Ray Douglas Bradbury, ilustre escritor e roteirista norte-americano, em seu festejado livro Fahrenheit 451, elabora uma fantasia distópica com alusão ao próprio título da obra, que é a temperatura na qual os livros queimam. Imagina ele um sombrio país onde é proibido ler. Os bombeiros não mais apagam incêndios e, sim, queimam os livros que alguns cidadãos rebeldes escondem em suas casas. A autoridade central impõe, por decreto, a felicidade para todos, alegando que os livros são cheios de ideias nocivas e a leitura solitária só favorece a melancolia. Os antagonistas desta ideia são perseguidos e vão se esconder nas florestas. Cada um deles memoriza um livro para ser transmitido às gerações posteriores tão logo os arbitrários governantes deixem o poder. No aludido livro, tudo parece assemelhar-se a uma perfeita distopia, pois foi fruto da fértil imaginação do escritor, prevendo um mundo desesperador e extremo. Não obstante, ao perscrutarmos os escaninhos da História, observaremos, por meio da trajetória vacilante das milenárias experiências humanas, a concretização de vis atos de incineração de livros por banais motivos políticos e religiosos. Torna-se quase inacreditável constatar que ditadores, em pleno século XXI, ainda hoje censuram periódicos e publicações por interesse de se manterem no poder, e alguns se escorando em interpretações duvidosas de textos religiosos. Por simples exemplo, temos países como a Coreia do Norte, que controla todo o conteúdo de leitura e entretenimento de seus cidadãos, não lhes permitindo acessar, de forma alguma, a cultura ocidental.

E o que foi feito do personagem central de nossas considerações, o bispo Dom Antonio Palau Y Termens?4 O venerável Codificador nos esclarece que, em reunião mediúnica na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, o próprio Antonio Palau, em Espírito, manifestou e se disse arrependido de sua infeliz atitude. Assombrado e temeroso, declara que vozes foram ouvidas por ele em ecos que reverberavam em sua mente palavras proféticas: “Queimaste as ideias e as ideias te queimarão”.

Como este Espírito teria quitado sua dívida cármica proveniente daquela cinzenta manhã de outubro de 1861?5

A revelação não poderia vir de outro lugar senão do interior das Minas Gerais. Desencarnado em julho de 1862, renasce em 20 de dezembro de 1917 o agora cidadão brasileiro Sebastião Bernardes Carmelita, honorável uberabense, homenageado com o nome de uma avenida no bairro Boa Vista daquela cidade. Autêntico sacerdote, com força de uma vocação inata e reverenciado pela população local, padre Sebastião foi cognominado de “padre dos pobres e dos doentes, o mais ecumênico dos sacerdotes, aquele que viveu para servir e serviu enquanto viveu”. Seu mais forte vínculo com a Doutrina Espírita ocorreu ao assistir o programa “Pinga-fogo” da extinta TV Tupi de São Paulo, cujo entrevistado era o já famoso médium Chico Xavier. Tornou-se ardoroso assinante da revista O Reformador, tão fiel que, quando a editora deixou de lhe enviar um exemplar, recorreu, solícito, ao presidente da FEB, à época Francisco Tisen, por intermédio de Ivone Pereira. Como não poderia receber a revista em seu nome, colocou a assinatura em nome de seu pai.6

Cultivou uma profícua amizade com a respeitável médium durante mais de vinte anos, da qual recebia mensalmente os mais recentes lançamentos de livros espíritas. Vivia em intenso conflito íntimo, pois as ideias espíritas lhe esfogueavam a mente e sua realidade de sacerdote católico se lhe impunha uma atroz contradição.7 Aplicava passes nos doentes que assistia e seus sermões eram cada vez mais inflamados pelos conceitos espiritistas, a ponto de ser repreendido por seus superiores e, certa vez, ter seu sermão dominical suspenso em pleno ato por autoridade episcopal.

Esfogueado por suas crises conscienciais, procurou Chico Xavier, anunciando que deixaria as vestes talares para assumir de vez a Doutrina. Emmanuel então lhe transmite expressiva e contundente mensagem alertando: “se deixar a batina, vindo para a área espírita sem ela, teremos um companheiro a mais do lado de cá; porém, permanecendo onde se encontra, teremos um obreiro penetrando, com as luzes da Doutrina dos Espíritos, em ambientes cujo acesso nos é compreensivelmente vedado”. padre Sebastião obedeceu humildemente a recomendação, terminando sua existência como sacerdote amado e respeitado por seus paroquianos.

Diz um dito popular que “a Justiça Divina tarda, mas não falha”, no entanto, sabemos que a misericórdia divina escolhe o tempo certo para a cobrança de nossas dívidas. As mãos do bispo Antonio Palau que queimaram desrespeitosamente livros sagrados no longínquo 1861, agora sangraram, sem anestesia, em padre Sebastião Bernardes, acometido que fora de um gravíssimo processo inflamatório de micose nos dedos. Recordando as sábias palavras do Cristo, “se vossas mãos forem motivo de escândalo, arrancai-as”, percebemos que a Justiça, com “J maiúsculo” pode até ser cega, no sentido de não privilegiar ninguém, mas é plenamente misericordiosa, enquadrando os déspotas do passado em sanções que não os desmoralizam e, sim, dignificam a criatura. A sentença condenatória alcança o esquecido facínora na dosimetria penal perfeita, encontrando-o amadurecido e consciente para submeter-se, espontaneamente, sem revolta e mais corajoso, a sofrimento que não tenha caráter de punição e, certamente, que seja um ensinamento útil para o Espírito livre, imortal e eterno.

A incineração dos livros no Auto de Fé de Barcelona alavancou a venda de exemplares espíritas, impulsionada que foi pela instigante curiosidade natural do homem de desvendar os segredos do oculto e de saborear o gosto duvidoso da “maçã bíblica”, o fruto proibido.

Aqueles que se tornaram agentes da censura e da repressão, pagaram caro por suas infâmias, pois se atreveram a tentar obstaculizar a marcha inexorável do progresso, atravancando o caminho de homens sábios e missionários, dignos instrumentos da vontade divina.

Tão leve e despretensiosamente como descrevemos as belezas da Barcelona hodierna em nossa reflexão histórica, assim encerramos recordando Mário Quintana, o “poeta das coisas simples”, em seu sugestivo e sutil Poeminho do Contra:

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

Que assim o diga Hippolyte Léon Denizard Rivail!


1) Kardec, Allan. Revista Espírita, novembro de 1861.

2) Wantuil, Zeus e Thisen, Francisco. Allan Kardec, vol. II. FEB, 1ª edição, 1990, pág. 304.

3) Vallejo, Irene. O infinito em um junco. Editora Intrínseca Ltda., 2022. Rio de Janeiro, pág. 136.

4) Barrera, Florentino. Auto de fé de Barcelona. Editora CCDPE-ECM, 2007, pág. 87.

5) Freitas, Augusto Marques. Yvone do Amaral Pereira – o voo de uma alma. Edições CELD. Rio de Janeiro, 2000, pág. 137.

6) Nogueira da Gama, Alberto. Revista Reformador, janeiro e fevereiro de 1983.

7) Revista Reformador, janeiro de 1983, pág. 26.

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