A Comunicação Não-Violenta na Enfermagem Espiritual
Daniel Salomão
Em artigo anterior,i destacamos a Comunicação Não-Violenta (CNV), técnica desenvolvida pelo psicólogo Marshall B. Rosenberg (1934-2015),ii como ferramenta aplicável aos trabalhos espíritas, notadamente os de Diálogo Fraterno e Enfermagem Espiritual. Neste artigo, destacamos um exemplo na obra do Espírito André Luiz em que elementos da técnica podem ser aproximadamente observados.
Resumidamente, a CNV possui quatro passos. No primeiro deles, ao lidar com um interlocutor que descreve suas dificuldades pessoais, somos convidados à observação: ouvir com atenção, reunir as informações trazidas pelo atendido antes de emitir uma avaliação. Após isso, devemos incentivá-lo a que tome consciência de seus sentimentos perante as situações que enfrenta e os expresse. Em seguida, é importante que o auxiliemos a identificar as necessidades derivadas desses sentimentos e a formular pedidos concretos que possam satisfazer essas necessidades e amenizar sentimentos incômodos.
A obra “Entre a terra e o céu”, ditada pelo Espírito André Luiz a Chico Xavier, apresenta a difícil relação entre uma ex-esposa desencarnada e a segunda esposa de seu ex-marido. O ciúme de Odila, ao ver Amaro desposar outra mulher, é agravado pela atitude de Zulmira, que negligencia cuidados com o filho do primeiro casamento, facilitando sua desencarnação por afogamento. O ódio da mãe, aliado ao sentimento de culpa de Zulmira, desencadeia forte processo obsessivo.iii
Buscando auxiliar a obsediada, o Espírito Irmã Clara procura a obsessora Odila no plano espiritual, desenvolvendo rico diálogo,iv no qual se pode perceber uma aproximação da CNV. Trata-se de um excelente exemplo para a tarefa de esclarecimento em reuniões mediúnicas.
No caso em questão, a maior parte da etapa de observação prescinde da conversa, pois Clara já tem conhecimento preciso da situação, o que, em geral, não ocorre em reuniões mediúnicas de enfermagem espiritual. Contudo, ao apresentar-se a Odila, “com inesquecível inflexão de ternura”, pergunta: “que fazes?”. Com essa postura, dá oportunidade a que sua interlocutora exponha a situação com as próprias palavras, demonstra interesse sincero em ouvi-la.
Odila informa, então, seu desejo de vingança, de expulsar aquela que “tomou-me o marido e assassinou-me o filhinho”. Aproveitando o ensejo, Clara caridosamente a instrui, destacando na fala de Odila os sentimentos de “desvairado apego”, “egoísmo aviltante” e “ciúme”. Afinal, o desejo de vingança não teria sua origem em um senso de justiça.
A empatia demonstrada pela orientadora, que compreende sem condenações a obsessora, se torna, também, grande ferramenta de argumentação. Odila é convidada a olhar Zulmira com outros olhos, vendo-a “derrotada e infeliz”:
Já te imaginaste no lugar de Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades e aflições? Já te colocaste na condição do esposo que asseveras amar? Se te visses no mundo, sem a companhia dele, com os filhinhos necessitados de consolo e sustentação, não sentirias reconhecimento por alguém que te auxiliasse a protegê-los? Consideras somente os teus problemas… Entretanto, o homem amado permanece no cárcere de escuros padecimentos íntimos a debater-se com enigmas inquietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo…
Mesmo concordando com Odila quanto à inveja que motivara a negligência de Zulmira, Clara aponta a inexperiência e a ignorância da segunda esposa de Amaro, destacando ainda que o afogamento da criança poderia ter outras causas. Ademais, a mesma empatia de que era alvo poderia ser aplicada pela obsessora a Zulmira. A rival agora poderia ser vista como auxiliar, como aquela que apoia a família de Odila em sua ausência.
Clara demonstra ainda os prejuízos que a própria obsessora se proporcionava, alimentando o ciúme que “transforma-se em aflitiva fogueira a calcinar-nos o coração”. Melhor seria avaliar sua nova situação de desencarnada, reconhecer o aprendizado derivado de suas experiências terrestres, ampliar sua visão de família, de forma a acolher Zulmira como irmã e filha.
A partir dos sentimentos detectados, Clara passa a conduzir Odila a identificar suas reais necessidades. Não queria realmente vingança, mas ser amada pela “antiga” família. Contudo, caso reencontrasse Amaro, poderia supô-lo “capaz de querer-te, transtornada qual te encontras”? Seria necessária a mudança íntima para um encontro feliz com o ex-marido. Nesse sentido, seria fundamental olhar Amaro e a nova esposa como quem “clama por tua assistência”, sendo para eles “uma inspiração e uma bênção”.
Odila também sentia falta do filho. Seu foco em prejudicar Zulmira impedia que enxergasse a possibilidade de revê-lo. Se ela havia morrido e permanecia viva, por que o mesmo não teria ocorrido com o pequeno Júlio? Alcançando “o ponto sensível daquela alma atribulada”, Clara despertou outra necessidade que poderia ser atendida:
– Porque não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e embalá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te consagrares inutilmente à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?
Enfim, Odila, com o apoio de Clara, consegue identificar suas reais demandas. Com muita dificuldade, formula um único pedido: “Meu filho!… Meu filho!…”.
Concluindo, podemos observar que a CNV facilita, acima de tudo, um processo de autoanálise. Pela orientação compreensiva de Irmã Clara, Odila consegue identificar e expressar seus sentimentos, deduzir suas reais necessidades, pedir e buscar efetivamente o que poderia supri-las: o trabalho no bem, em prol do casal encarnado, e o reencontro com o filho amado. Fraternal e racionalmente, a obsessora é levada a perceber a inutilidade do processo de vingança, bem como o sofrimento que impunha, acima de tudo, a si mesma.
i SILVA, Daniel Salomão. A Comunicação Não-Violenta aplicada aos trabalhos espíritas. Revista O Médium, n. 752, Juiz de Fora: AME/JF, jul/ago, 2023.
ii ROSENBERG, Marshall B. Comunicação Não-Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5. ed., São Paulo: Ágora, 2021.
iii XAVIER, Francisco C. Entre a terra e o céu. Pelo Espírito André Luiz. 25. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2008, c. 3.
iv Idem, c. 23 (para todas as citações seguintes).