Pilares da obsessão por fascinação

José Fernando

“A vaidade é, definitivamente, meu pecado predileto!”
O “Diabo”

A frase em epígrafe nos remonta à última cena do filme O Advogado do Diabo, baseado no livro homônimo do escritor norte-americano Andrew Neiderman, de 1997,[1] que, por sua vez, o compilou em uma versão moderna do livro de 1959, escrito por Morris West, de mesmo título. Depois de vãs tentativas de cooptar um jovem advogado para sua corte de maldades e luxúrias, oferecendo-lhe o paraíso na Terra, o próprio maligno, em primorosa interpretação de Al Pacino, surpreende-se ao constatar a facilidade de se manipular uma das muitas deficiências da alma humana.

Estamos nos referindo à vaidade, aquela que é uma vertente do orgulho, muitas vezes confundida com amor-próprio, pelo excesso de valorização de si mesmo. Vejamos, então, como se enquadraria a vaidade na fenomenologia mediúnica espírita.

Allan Kardec, em suas acuradas observações registradas em O Livro dos Médiuns, considerado como o melhor tratado sobre mediunidade até hoje publicado, classificou as variedades das obsessões[2] em uma escala ascendente de intensidade. Partiu da “obsessão simples”, a que todos nós estamos mais ou menos sujeitos, para um nível acima de comprometimento obsessivo, por ele cognominado “fascinação”, até atingir um grau superlativo de submissão à vontade coatora do Espírito mal-intencionado, que catalogou como “subjugação”.

A fascinação é, por conseguinte, uma fase intermediária entre a obsessão simples, a qual demanda certo esforço do indivíduo para dela se livrar, e a subjugação, que necessita de esforço hercúleo para se libertar. Por se situar entre os dois polos de menor e maior grau de dificuldade, não significa que seja tão simples a sua terapêutica. Kardec considerou que a fascinação tem consequências muito mais graves do que a obsessão simples.[3] Nela, a indução do fascinador é dirigida diretamente ao pensamento do obsidiado, provocando uma ilusão que paralisa seu raciocínio, levando-o a se fixar em sua particular visão de mundo, mesmo que a realidade lhe seja totalmente contrária. Não é tão penosa quanto a subjugação, pois o fascinado não sente constrição física que lhe ocasione dor e nem se sente obrigado a ter comportamento que o desagrade. Ao contrário, suas atitudes alienantes lhe causam prazer e são estimuladas pelo obsessor que sabe inflar o seu ego, excitando-lhe a vaidade.

Fora do grupo espiritista, a obsessão por fascinação se espalhou de forma quase incontrolável. Atualmente, grupos políticos e religiosos, em fascinação coletiva, digladiam-se defendendo pontos de vista pueris, que a mais simples análise da realidade e do bom senso faz cair por terra, seja pela incongruência e insensatez de suas alegações, seja pela infantilidade de raciocínios de que fazem uso.

Trazendo esta constatação kardequiana para a nossa seara de trabalho, que é a prática da mediunidade, a experiência nos tem demonstrado que a obsessão por fascinação tem sido mais comum no Movimento Espírita do que se possa imaginar. Em destaque, a movimentação daqueles conhecidos por “espíritas independentes”, tarefeiros estes que, por não se vincularem ao Movimento Federativo de Unificação, encabeçado pela FEB, comprometem a lisura do Movimento Espírita, ao tomarem atitudes contrárias aos princípios kardequianos. Isso porque insistem em manter a denominação espírita em suas instituições e se afirmam, categoricamente, adeptos do Espiritismo.

Preponderando a vaidade, filha dileta do orgulho, como um dos principais plugues de ligação do Espírito obsessor, este aciona o ego do médium invigilante, estimulando exageradamente sua autoestima. Realça atitudes de superioridade intelectual, exacerbando sua capacidade de manipulação de pessoas e circunstâncias ao seu redor. Poderíamos destacar duas causas como sendo propiciadoras dessa infeliz situação. Uma delas pode estar no comprometimento do médium com este Espírito em existências passadas.[4] O obsessor de hoje teria sido tão humilhado e ridicularizado pelo médium que, agora, estaria em revanche, impondo a este gestos e atitudes burlescas, com o intento de desmoralizá-lo perante sua família e seus amigos, transformando-o em um ser caricato, relegado a ínfimas condições morais.

A outra causa, talvez primordial, encontra-se no desejo de obstrução da divulgação da Boa Nova entre os homens. Vale lembrar o alerta de Kardec quando afirma que: “não esqueçamos que o Espiritismo tem inimigos interessados em obstar-lhe à marcha, aos quais seus triunfos causam despeito, não sendo os mais perigosos os que o atacam abertamente, porém os que agem na sombra, os que o acariciam com uma das mãos e o dilaceram com a outra.”[5]

Entidades espirituais, interessadas em obstar o sentimento de amor ao próximo e de bom senso na Humanidade, dotadas de inteligência e especializadas em técnicas hipnóticas, investem em tarefeiros competentes e muito bem preparados no Plano Espiritual, ocasionando, dentre outros malefícios, uma pretensa e temporária, ainda bem que infrutífera, desmoralização dos conceitos racionais da Doutrina.[6] Dessa forma, conseguem desacreditar esses médiuns, disseminando insegurança e permitindo a debandada de quantos se aproximam do Movimento Espírita.

Para a nossa segurança e alegria, sabemos que a Doutrina Espírita permanece incólume às investidas de inúmeros detratores de seus postulados, que, desde a sua origem, se esforçaram por dilapidar esses pilares de racionalidade e bom senso. Médiuns fascinados, porém, provocam alvoroço, dúvidas e incertezas aos neófitos que aportam, tíbios, à seara do Espiritismo Cristão, sedentos de conforto e baldos de real discernimento em suas amarguradas vidas.

Analisando os efeitos das novas técnicas de comunicação, que alcançam multidões em frações de segundos, e as mudanças percebidas nas estruturas sociais deste século XXI, podemos tirar algumas conclusões de como o processo obsessivo por fascinação tem acarretado infaustos comportamentos em médiuns e divulgadores do Espiritismo, que, antes seguidores sensatos dos postulados doutrinários, agora labutam em desacordo com a essência racional da Doutrina. Vejamos alguns casos que merecem cuidadosa reflexão.

Atualmente, em superficial navegação por meio das redes sociais, podemos encontrar “seguidores” do Espiritismo exaltando a própria vaidade, ao vangloriarem-se de feitos passados ou presentes. Muitos, em seus comentários, mesclam ensinamentos evangélico-doutrinários com opiniões político-partidárias, quase sempre, desprovidas de nexo, racionalidade e sensibilidade.

Pôde-se constatar, em tempos pré-pandêmicos, expositores, ao serem convidados a palestrar em alguma instituição, portarem suas maquininhas de cartão, oferecendo facilidades de crédito e insistindo na compra de seus livros, alguns de conteúdos duvidosos, e expondo-os nos salões de palestras, muitas vezes sem comunicação prévia aos diretores.

 Vez por outra, médiuns dotados da faculdade de psicopictografia, em transe, realizavam suas pinturas mediúnicas enquanto ocorria a reunião pública e, ao final, vendiam seus quadros em altíssimo preço. Alegavam aplicar seus recursos financeiros na manutenção de certa instituição caritativa, no entanto, numa olhadela rápida em seu entourage, poder-se-ia perceber a idolatria ao médium e um estilo de vida bem mundano, em exibição de seletos e custosos bens de consumo, muito distantes da simplicidade evangélica, atributo básico da labuta mediúnica.  

Em outras ocasiões, perfilavam expositores, que, bem informados sobre os recursos midiáticos, chegavam às casas espíritas munidos de câmeras de vídeo próprias. Preocupados, se posicionavam no seu melhor ângulo para a transmissão on-line de suas palestras. Ainda publicam fotos no Instagram, estimulam curtidas no Facebook e postam opiniões bombásticas no Twitter. Na mensagem que passam, são eles os verdadeiros arautos do Bem. Jesus, na maioria das vezes, é apenas uma pequena referência em citações decoradas de versículos do Evangelho.

Deleitam-se com a repercussão de suas imagens e estilos bem estudados em culto insensato às mais frívolas vaidades. Muitos deles, apesar de suas retóricas alienantes e descabidas, conseguem reunir em torno de si um rebanho de “gado miúdo”, criaturas atentas e perplexas, fascinadas como eles, sem conhecimento doutrinário, verdadeiras claques a aplaudirem seus disparates e a sustentarem seus processos fascinatórios. Suely Caldas Schubert, em seu livro Transtornos Mentais, destaca esta singular característica da obsessão por fascinação, que ocorre quando o fascinado se torna também fascinador, exercendo nefasta influência sobre muitos que o cercam.[7]

Subordinados a um processo sutil de fascinação, certos seareiros, depois de muitos anos à frente dos trabalhos na instituição a que estão vinculados, sentem que foram “deixados de lado” pelos companheiros e relegados a funções que julgam ser mais simples. Amargurados, afastam-se do trabalho espírita para dedicarem-se a atividades artísticas, para as quais, por vezes, iludidos, imaginam-se possuidores de talentos. Outros há que, depois de verem suas opiniões rechaçadas por nove entre 10 diretores, evadem-se das casas onde labutaram por anos. Batem às portas de outra instituição, cujos dirigentes os acolhem com tanta fraternidade, que olvidam a importância de solicitar uma recomendação acerca de suas atividades realizadas anteriormente. Em breve tempo, estes diretores entregam-lhes, passivamente, as responsabilidades diretivas da casa e, ao longo de alguns anos, ei-los em continuada fascinação, novamente desgastados pelos frequentes atritos, sem se darem conta de que são eles próprios a causa das divergências. Frustrados e desgostosos, afastam-se da convivência dos amigos de então, para refugiarem-se por definitivo em seus lares, à semelhança de uma aposentadoria voluntária e prematura, ardilosamente preparada por seus obsessores, perdendo um valoroso tempo de trabalho no Bem.

Em situação análoga de incompatibilidade de ideias, determinados trabalhadores abandonam o convívio difícil, porém, saudável, das diversidades de opiniões para, comodamente, se restringirem apenas à convivência daqueles que, por longos anos, tiveram que aceitar seus desmandos e imposições, ou seja, seus familiares. Alguns aproveitam o isolamento ao qual se permitiram precocemente, para, dentre outras atividades, escreverem livros insossos, com predominância abusiva de repetições claras dos textos doutrinários conhecidos, carentes, portanto, de ideias próprias, quando não recheadas de raciocínios enviesados. Suspensos na ilusão que os distrai, convencem-se da imaginária relevância dessa reclusão, alegando a necessidade de mais tempo livre para melhor compreenderem e divulgarem os ensinamentos espíritas.

Evidencia-se ainda a fascinação materializada na enxurrada de livros ditos mediúnicos que as editoras lançam no mercado cotidianamente, tão ao gosto de leitores ávidos por novidades e que menosprezam os livros clássicos da Doutrina. Muitos deles são livros de enredo novelístico, relatando romances sem dados históricos, verdadeiros folhetins, mesclando textos doutrinários com tramas ardilosas, nas quais o ensino moral, de tão pouco, é abafado pela preponderância de conteúdos depressivos e de importância inferior para o engrandecimento cultural e espiritual do leitor.

Alguns poucos escritores insistem em fazer da literatura espírita outra fonte de renda, alegando que todo valor auferido será revertido em obras de caridade. Não recebem por preço de capa, mas usufruem das vantagens concedidas pelas editoras em viagens faustosas; não participam da divisão dos lucros, porém requerem montantes cada vez maiores para cobrir suas “despesas pessoais”. Gozam do status de escritor, participando dos lançamentos dos livros e sendo frequentemente entrevistados. Ocupados, acabam deixando lacunas irreparáveis nas suas atividades junto aos companheiros, no dia a dia da árdua e anônima tarefa da singela célula espírita.

Felizmente, a maioria dos escritores espíritas pugna pela correta interpretação dos textos doutrinários e vigia, tenazmente, sua imaginação, para que ela não passeie pelas avenidas largas do misticismo e nem viaje pelas estradas deterioradas das previsões com datas certas de acontecimentos futuros desditosos ou, até mesmo, exageradamente otimistas.

Antero de Quental, com sua verve eloquente, nos endereça precioso alerta por meio de seus versos intitulados Estranho Concerto, assim se expressando post-mortem pelas mãos abençoadas do moderno e modesto apóstolo Francisco Cândido Xavier:

Clamou o Orgulho ao homem: — Goza a vida!
E fere, brasonado cavaleiro,
Coroado de folhas de loureiro,
Quem vai de alma gemente e consumida…

Veio a Vaidade e disse: — A toda brida!
Dominarás, além, no mundo inteiro;
Cavalga o tempo e corre ao teu roteiro
De soberana glória indefinida!…

Mas a Verdade, sobre a humana furna,
Gritou-lhe, angustiada, em voz soturna:
“Insensato! Aonde vais, sem Deus, sem norte?”

E impeliu, sem detença e sem barulho,
Cavaleiro e corcel, vaidade e orgulho,
Aos tenebrosos pântanos da Morte.[8]

Para concluir nossa reflexão sobre este nefasto vício moral, o escritor francês Gustave Flaubert, considerado um dos maiores romancistas do séc. XIX, nos apresenta uma releitura da hagiografia de Santo Antão, conhecido santo católico, egípcio, que viveu uma vida de eremita e de grandes privações.[9] Aos 20 anos de idade, órfão de pais e tendo herdado muitos bens, adentra uma igreja, onde tem um insight espiritual. A partir daí, vende todos os seus bens materiais, financia a vida monástica de sua irmã e doa tudo o que lhe resta aos pobres, para viver uma vida de anacoreta.

Nessa condição, afirma seu biógrafo Santo Atanásio, patriarca de Alexandria, passa a viver longos anos em uma gruta longe da cidade. No local, Antão é constantemente assediado pelo espírito do mal que, além de lhe proporcionar visões tentadoras de poder e sensualidade, também suplicia vigorosamente seu corpo físico, a ponto de quase levá-lo à morte. Anos depois, superando estoicamente toda a sorte de tentações e flagelos físicos, tem fim a constrição maligna.

Narra a releitura de Flaubert que, aos 105 anos de idade, o diabo virou-lhe as costas e disse: “Você venceu! Pela primeira vez na história, alguém foi mais forte que eu” e se retirou da caverna. Antão caiu de joelhos e agradeceu a Deus com uma oração simples: “Muito obrigado, agora me tornei um santo”. Era tudo o que o demônio precisava ouvir. Deu um sorriso largo e imediatamente voltou. Antão resistiu a tudo, menos à vaidade de ser um santo.[10]


[1] NEIDERMAN, Andrew. The Devil`s Advocate. New York: Pocket, 2003.

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 23.

[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 23, i. 239.

[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 23, i. 245.

[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1a ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2a p., c. 29, i. 336.

[6] FRANCO, Divaldo P. Tormentos da obsessão. Salvador: LEAL, 2001, c. 11 e 12.

[7] SCHUBERT, Suely Caldas. Transtornos mentais. 1a ed., Catanduva: InterVidas, 2012, 2ª p., c. 3.

[8] XAVIER. Francisco Cândido. Vereda de Luz. Por Espíritos diversos. São Bernardo do Campo: GEEM, 2015, p. 34.

[9] SANTO ATANÁSIO. A vida de Santo Antão. 1a ed., São Paulo: Santa Cruz, 2019.

[10] FLAUBERT, Gustave. As tentações de Santo Antão. 2a ed., São Paulo: Iluminuras, 2000.

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