Na estrada com Kardec

Coluna Com Afeto, Kardec

Fábio Fortes

Na esteira da publicação das primeiras obras espíritas – O Livro dos Espíritos, primeira edição de 18 de abril de 1857 e a segunda de 1860; O que é o Espiritismo, de 1859; e, ainda, O Livro dos Médiuns, de 1861 –, pode-se afirmar que a Doutrina Espírita e, particularmente, Allan Kardec, se tornaram bem conhecidos na França. Por essa razão, não raras eram as correspondências advindas de outras cidades. Também bastante comuns eram os convites que o Codificador recebia para visitar núcleos espíritas fora de Paris.

Em 1862, Kardec realizou um périplo por várias cidades francesas, com visitas a núcleos espíritas, participação em sessões mediúnicas e palestras. Dessas viagens, temos a amostra da correspondência entre Kardec e Amélie Boudet entre 18 de setembro e 12 de outubro de 1862, período em que o Codificador passou por oito localidades: Lyon, Nîmes, Sète, Toulouse, Marmande, Bordeaux, Marennes, St. Jean-D’Angély, perfazendo um percurso de mais de mil quilômetros. Tendo em vista as condições materiais de viagem da época, em que os transportes coletivos eram pouco confortáveis e lentos, além dos poucos recursos próprios para hospedagem e alimentação, essa não era tarefa das mais fáceis.

Nesse conjunto de epístolas, sempre endereçadas a Amélie, revelam-se as experiências, as emoções colhidas em cada parada, os desafios encontrados. Delas destaca-se uma faceta sempre explorada da biografia de Kardec, a do trabalho prático em prol da difusão do Espiritismo. Mais que aquele pensador e intelectual que se debruçara sobre as comunicações recebidas da Espiritualidade para compilar, organizar e pôr de pé um sistema de pensamento coeso e coerente, que é a base da Doutrina dos Espíritos, essas viagens nos permitem também compreender os problemas práticos e a dose de esforço pessoal e de abnegação que o empreendimento de difundir o Espiritismo exigia. A preocupação material, assim como os riscos associados a essa empresa, estavam sempre presentes. Nota-se, particularmente, o temor que a resistência conservadora, dominante à época, representava para o Espiritismo em seus primeiros anos. Na carta datada de 18 de setembro de 1862, ocasião em que Kardec se encontrava em Lyon, somos informados que

até o último momento, era muito incerto se teríamos a permissão para a reunião; o cardeal se opunha a isso com todas as suas forças; foi preciso fazer uma consulta a Paris, por despacho telegráfico; parece que veio uma ordem para deixar acontecer [o evento], e a autorização foi dada imediatamente. Uma conspiração havia sido organizada para causar desordem na reunião, para vaiar etc.

A oposição do cardeal pode ser entendida, pelo menos, como uma má vontade da Igreja em relação ao Espiritismo. O Catolicismo, com efeito, era um dos pilares institucionais do Segundo Império Francês, liderado por Napoleão III e que, após um golpe institucional contra o regime republicano, restaurara a monarquia na França, em 1851. A Doutrina Espírita vicejava, portanto, em um contexto em que os valores revolucionários que sustentaram a República Francesa – “liberdade, igualdade, fraternidade” –, de resto tão afinizados com a própria Doutrina Espírita, eram, entretanto, vistos com certa suspeição, senão com franca adversidade. Dito isso, é fácil compreender que a alusão à oposição feita pelo cardeal assinala mais do que um pormenor histórico sem importância, tal como uma divergência de ideal filosófico ou religioso. Trata-se, antes, de indício de uma ameaça real não somente à sobrevivência das iniciativas espíritas, mas também ao próprio bem-estar e segurança pessoal de Kardec. No entanto, em que pese isso, não se nota jamais na atitude do Codificador qualquer sentimento de desânimo ou de desespero. Verifica-se, ao contrário, uma serena confiança, motivada, decerto, pela permanente comunicação com os guias espirituais e pela própria intuição de Espírito missionário que certamente possuía. Ainda sobre a tentativa de embaraço que se arquitetara contra a sua visita em Lyon, Kardec nos esclarece:

Fomos advertidos e todas as providências foram tão bem tomadas que a trama foi impedida, e tudo transcorreu na mais plena ordem, todo mundo ficou muito satisfeito, exceto os perturbadores. Tenho todos os detalhes da intervenção dos Espíritos nesse caso; eles queriam essa sessão, e o que fizeram para impedir o tumulto é realmente incrível.

Essas poucas palavras, que teriam provavelmente tranquilizado Amélie, revelam a confiança na Providência Divina e a certeza de que, quando o trabalho segue diretrizes do alto, o trabalhador não está jamais sozinho, mas acolitado por inúmeros colaboradores do invisível.

Uma evidência clara desse intercâmbio com a Espiritualidade também se observa na carta datada de 28 de setembro de 1862. Depois de vários dias de viagem, em que visitara quatro cidades – Lyon, Nîmes, Sète e Toulouse –, Kardec descreve a acolhida fraternal, generosa e calorosa que recebera em Toulouse:

No hotel onde me hospedei, onde haviam me preparado um quarto, nada foi poupado para que eu tivesse todo o conforto desejável. Havia sempre cinco ou seis senhores que vinham almoçar e jantar comigo. O gerente do hotel é um espírita muito bom, assim como sua família, e me trataram com muita gentileza. No momento de partir, pedi minha conta; ele me respondeu que estava paga e que eu nada devia. Embora eu insistisse com aqueles que tinham providenciado isso, não houve meio de lhes fazer compreender; responderam-me que, quando um pai vai ver seus filhos, ele paga suas despesas na família.

Nessa passagem, fica claro que Kardec nada exigia de compensação pelo seu deslocamento, apesar das condições materiais de que dispunha, que não eram das mais confortáveis. A gentileza do anfitrião é evidenciada na intrigante justificativa que ele apresenta – “quando um pai vai ver seus filhos, ele paga suas despesas na família” –, o que sugere que, entre os primeiros espíritas, havia não uma relação de cortesia fria e distante, mas certo vínculo familiar. No entanto, mais interessante é a revelação que temos no final da carta, quando Kardec narra que, em sua saída, recebera a cópia de uma comunicação que os anfitriões entretiveram com seus guias espirituais e que fazia alusão à visita esperada do Codificador:

Há algum tempo, eles haviam perguntado a um dos seus guias espirituais se ele podia lhes dizer o dia de minha chegada. O Espírito lhes respondeu: “Não posso vos precisar; ele vos informará sobre isso; mas tenho algo para vos recomendar: é que estejais repletos de bondade a seu respeito, pois deveis considerá-lo como o pai de todos vós. É somente ele quem conduz o fio da fé católica, e apenas quando essa luz for visível a todos, que vós podereis compreender e apreciar esse ser misterioso.

Pergunta: Não poderíeis vós nos dar uma instrução quanto à maneira como devemos recebê-lo?

Resposta: Oh! Para isso procedei de acordo com vosso coração; se vos disséssemos tudo, isso não vos custaria nada, e todo o mérito seria para nós. Trabalhai, somente assim se chega ao Pai celestial.”

“Procedei de acordo com o vosso coração, trabalhai”, tal era a orientação oferecida pelos guias espirituais aos primeiros espíritas em 1862; tal permanece também sendo a proposta dos benfeitores espirituais para cada um de nós.

KARDEC, Allan. [Carta de Allan Kardec para Amélie Boudet]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=172. Acesso em: 30 Abr 2021. Projeto Allan Kardec.

KARDEC, Allan. [Carta de Allan Kardec para Amélie Boudet]. Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=169. Acesso em: 1 Mai 2021. Projeto Allan Kardec

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