Com afeto, Kardec: Rivail e Kardec nas cartas espíritas

Fábio Fortes

Quem é Allan Kardec – o Espírito missionário e o ser humano encarnado? Quais passos, dificuldades, obstáculos e surpresas ele encontrou ao longo de sua caminhada até se celebrizar como o Codificador da Doutrina Espírita? Qual era a relação que manteve com admiradores, familiares, colaboradores, detratores?  O conjunto de cartas e documentos pessoais inéditos que foram recentemente publicados pelo Projeto Allan Kardec (www.projetokardec.ufjf.br), uma parceria entre a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) e o Allan Kardec On-line (AKOL), dão notícias singulares da personalidade, da vida e do trabalho doutrinário do Codificador. Nessa série de pequenos comentários, propomos apresentar alguns dos elementos que podemos descobrir juntos neste rico acervo.

Parte 1: Rivail e Kardec nas cartas espíritas

“Hyppolite LD Rivail, dito Allan Kardec”. Desse modo, o Codificador da Doutrina Espírita assinava boa parte de suas cartas pessoais, que agora vêm a público pelo Projeto Allan Kardec, que tem o objetivo de disponibilizar documentos pessoais inéditos de Allan Kardec, com manuscritos, transcrições do texto original francês e tradução. A assinatura de Kardec permite entrever duas dimensões do ser humano que estava por trás das obras da Codificação Espírita: de um lado, o professor Rivail, não imune às angústias, aos medos, aos problemas de saúde e financeiros, em grande parte, expressos nos intercâmbios particulares com seus familiares, especialmente Amélie-Gabrielle Boudet, seus amigos e companheiros de trabalho; por outro lado, o incansável trabalhador – o Espírito missionário – responsável pela edificação, organização, divulgação e redação das obras espíritas, o Kardec que expressa um vivo compromisso com os ideais que lhe são apresentados pelos Espíritos e incansavelmente organiza um movimento em torno deles.

Se os receios, angústias e medos, somados às dificuldades materiais, descortinam um Kardec ainda muito pouco conhecido, não nos surpreende, contudo, a expressão de afeto, carinho e encorajamento que ele dedica aos seus interlocutores espíritas e não espíritas. Talvez seja nesse ponto que Kardec e Rivail mais se encontram. Na carta direcionada ao senhor Boudou, por exemplo, datada de janeiro de 1864, vemos um Kardec já amadurecido na Doutrina Espírita. As primeiras obras espíritas já desfrutavam de certo reconhecimento, Kardec já era solicitado em diferentes círculos para fazer palestras coroadas, não raro, de efusiva e emocionada recepção.

Os manuscritos de O Evangelho segundo o Espiritismo já estavam em fase adiantada e, dali a alguns meses, sairia a lume também essa obra. Kardec recebia dezenas de correspondências diárias, as quais não somente se dedicava a responder pessoalmente, como a manter cuidadoso arquivo de cópias e rascunhos para a posteridade. Muitos desses rascunhos compõem o acervo que hoje temos em mãos no Projeto Allan Kardec, graças a uma história curiosa que envolve a sua transmissão, e que será contada outro dia.

Apesar disso tudo, a breve carta de Kardec em resposta a esse irmão espírita revela respeito e amizade. Mais que isso, guarda valiosos ensinamentos para o senhor Boudou e seu grupo de Toulouse, que começavam os seus primeiros passos na Doutrina. Com a generosidade típica do professor Rivail, mas com a precisão meticulosa do pesquisador Kardec, lemos então os primeiros conselhos: “se continuarem a caminhar na via da sinceridade, da humildade e da dedicação, só poderão ter a aprovação de Nosso Senhor e a proteção dos bons Espíritos.” São as qualidades morais, mais que a aptidão intelectual, que são postas como condições para a presença dos bons Espíritos. Mais adiante, Kardec coloca-se inteiramente disponível para orientar o grupo, mediante a troca de novas correspondências: “sempre estarei feliz se houver ocasião de provar a todos os membros do seu grupo com meus conselhos, se acaso deles precisem”.

Não eram raras as teses estranhas que vinham à tona em torno do Espiritismo, nem eram poucos, àquela época, os Espíritos detratores e seus adversários, sejam encarnados ou desencarnados. A posição de Kardec é, contudo, sempre serena diante de todos os fatos. Se, por um lado, isso não desumaniza a personalidade de Rivail, por outro revela qualidades extraordinárias do Espírito que adotou o pseudônimo Allan Kardec. Na mesma carta, o Codificador se detém sobre a informação, recebida pelo grupo de Toulouse, sobre a possível vinda de um novo messias.

A tese messiânica, tão arraigada no espírito humano desde tempos imemoriais, também teve espaço nas meditações espíritas em seus primórdios, como entrevemos nessas poucas palavras que Kardec dirige aos seus amigos: “conforme o senhor me diz, vejo que os Espíritos lhe falaram do futuro messias, como já o fizeram em outra parte; uma revelação da qual somente convém se falar ainda com circunspecção”. Como se nota, a postura de Kardec é exemplar. Não se trata da recusa definitiva de uma ideia nova – o que revelaria um dogmatismo doutrinário, que negaria ao Espiritismo seu caráter dinâmico e progressivo –, nem tampouco da adesão ingênua, sem que essa tese seja sopesada em vista de outros relatos e de mais profunda meditação. O conselho de Kardec é preciso: convém evitar divulgar essa ideia, deve-se falar dela ainda com reserva. Essa atitude não somente é típica do método que adotou, como também revela o zelo e a abertura com que ele se dirigia aos companheiros, em face das novas revelações.

A bem da verdade, essa face do professor Rivail e do Codificador do Espiritismo, Allan Kardec, revela-se também nas obras espíritas que estudamos e com que aprendemos a Doutrina Espírita. Contudo, no conjunto de cartas a que finalmente temos acesso, podemos enriquecer essa personalidade com outros ângulos de sua trajetória de trabalho e dedicação. Convidamos os leitores a seguirem conosco, nas próximas edições, nessa redescoberta de Allan Kardec, a partir de suas cartas. Embora dirigidas aos companheiros de sua época, as cartas espíritas, preservadas para a posteridade, são também direcionadas a nós. Elas nos ajudam a repensar o modo como construímos, praticamos e vivemos o Espiritismo em nossos dias.

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