Sonho dos Espíritos

Daniel Salomão

Em famoso trecho da obra Nosso Lar, psicografada por Chico Xavier, o Espírito André Luiz nos traz interessante experiência de sonho vivenciada por ele no plano espiritual. Também na Revista Espírita de junho de 1866, Allan Kardec registra uma comunicação mediúnica relatando episódio semelhante. Diante de ambos os relatos, algumas questões podem surgir. Por exemplo, se durante o sono do encarnado, o Espírito se desprende do corpo para visitar o plano espiritual, naturalmente acompanhado de seu perispírito, enquanto desencarnado do que se desprenderia? Há alguma incompatibilidade doutrinária nos episódios? O objetivo deste artigo é trazer uma breve comparação desses textos, destacando sua coerência com os princípios espíritas.

André Luiz, após longa sequência de tarefas na colônia espiritual Nosso Lar, sentiu “grande necessidade do sono”, recebendo da amiga Narcisa um leito cuidadosamente preparado. Ao se deitar, rapidamente foi invadido por sensações de leveza e se viu “arrebatado em pequenino barco, rumando a regiões desconhecidas”. Suas descrições da paisagem são as mais belas, contudo, a chegada a determinado porto trouxe o ápice de sua experiência. Ao ser chamado pelo nome, logo reconheceu sua mãe, também desencarnada, mas habitante de regiões superiores.i Experimentava, a propósito, o tipo de sonho que consiste no “entrar em comunhão com os outros Espíritos”,ii conforme explicado em O Livro dos Espíritos.

O local em que travaram diálogo, também belíssimo, continha flores singulares, compondo “tapetes dourados e luminosos”, emoldurando a felicidade e a paz que o inundavam.iii Como destaca André Luiz,

O sonho não era propriamente qual se verifica na Terra. Eu sabia, perfeitamente, que deixara o veículo inferior no apartamento das Câmaras de Retificação, em “Nosso Lar”, e tinha absoluta consciência daquela movimentação em plano diverso. Minhas noções de espaço e tempo eram exatas. A riqueza de emoções, por sua vez, afirmava-se cada vez mais intensa.iv

Ou seja, diferentemente do sonho dos encarnados, em que, em geral, o discernimento da situação é menor, André Luiz demonstra plena compreensão do que vivenciava. Apenas ao final, entre a despedida de sua mãe e o retorno a Nosso Lar, relatou ter perdido a consciência de si mesmo.v

O Espírito Dr. Cailleux, médico enquanto encarnado, como André Luiz, apresenta experiência semelhante. Em comunicação através do médium Sr. Morin, em maio de 1866, relata que

Há alguns dias senti uma espécie de torpor apoderar-se de meu Espírito, e embora conservando a consciência de mim mesmo, senti-me transportado no espaço; quando cheguei a um lugar que para vós não tem nome, encontrei-me numa reunião de Espíritos que em vida tinham adquirido alguma celebridade pelas descobertas que haviam feito.vi

A sensação de ser “transportado” é também relatada por André Luiz, porém, o que este descreve como sensação de “leveza”, é descrito por Cailleux como “espécie de torpor”. Além disso, o que André Luiz apresenta como “regiões desconhecidas”, Cailleux descreve, de forma parecida, como “um lugar que para vós não tem nome”. Por fim, ambos informam manter consciência do que acontecia.

Uma diferença, todavia, é marcante. Se André Luiz efetivamente conversa com outro Espírito, sua mãe, Cailleux dialoga com “anciãos de todas as idades”, que, na verdade, eram ele mesmo em vidas passadas, “diferentes corpos que meu Espírito animou em algumas encarnações”. Relata, assim, que “estava, pois, adormecido num sono magnético-espiritual”, que viu “o passado formar-se num presente fictício; reconheci individualidades desaparecidas na esteira do tempo, ou melhor, que tinham sido um mesmo indivíduo”.vii Nesse sentido, seu sonho se aproxima de outra das possibilidades apontadas em O Livro dos Espíritos, como “lembrança dos lugares e das coisas que viste ou que verás em outra existência e em outra ocasião”.viii

Interessante também é que, enquanto André Luiz parece “desdobrar” espontaneamente, Cailleux descreve certa magnetização por seus amigos espirituais, que provocam essa experiência para recompensá-lo, dar a ele uma “satisfação moral”. Esse procedimento, de indução da experiência sonambúlica, já havia sido registrado entre encarnados, por Kardec e pelos que o seguiram.ix Dessa forma, as características apontadas, que assemelham as experiências de encarnados e desencarnados, não nos parecem incoerentes doutrinariamente, como também pensava o Codificador. Para ele, tanto o sono natural quanto o induzido, ou magnético, poderiam ocorrer entre desencarnados, principalmente aos ainda mais “identificados com o estado corpóreo”. Em verdade,

Se sentem fadiga, devem experimentar a necessidade do repouso, e podem crer-se deitar e dormir, como creem trabalhar e viajar em estrada de ferro. Dizemos que eles o creem, para falar do nosso ponto de vista, porque tudo é relativo, e em relação à sua natureza fluídica, a coisa é tão real quanto as coisas materiais o são para nós.x

O desencarnado, nessa situação, “deve achar-se num estado relativamente análogo ao do Espírito encarnado durante o sono do corpo”, contudo, apenas o perispírito “dorme” durante sua jornada em planos superiores.xi Todavia, como não se pode imaginar o Espírito sem seu perispírito,xii lógico seria assumir a existência de “camadas” perispirituais, admitir que suas partes mais sutis acompanhariam o Espírito, enquanto apenas as mais densas permaneceriam em “sono”. André Luiz, ao afirmar “que deixara o veículo inferior no apartamento das Câmaras de Retificação”,xiii corrobora essa hipótese. Ademais, isso fica ainda mais claro em outros textos de sua autoria, quando nos informa sobre estruturas perispirituais, como o “corpo mental” e o “duplo etéreo”.xiv

Concluindo, salvo melhor juízo, Kardec não se expressou claramente sobre possível estratificação ou divisão em camadas do perispírito. Contudo, as conclusões a que chega ao analisar o caso do Dr. Cailleux, como expusemos acima, só nos parecem explicáveis dessa forma, como posteriormente apresentaria André Luiz. Em O Livro dos Médiuns, porém, encontramos algo pertinente ao assunto: ao descrever a ação dos Espíritos nos corpos sólidos, está registrada a informação de que “uma porção do perispírito se identifica, por assim dizer, com o objeto em que penetra”.xv Não estaria aí um indício de possível constituição múltipla do perispírito? Pensamos que sim.

i XAVIER, Francisco C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. 59. ed., Rio de Janeiro, FEB, 2007, c. 36.
ii KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 402.
iii XAVIER, Francisco C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. 59. ed., Rio de Janeiro, FEB, 2007, c. 36.
iv Idem.
v Idem.
vi KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano IX: 1866. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, junho.
vii Idem.
viii KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 402.
ix Idem, q. 455; KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2009, c. 1, i. 40; DENIS, León. No invisível. Rio de Janeiro: FEB, 2008, c. 12; etc.
x KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano IX: 1866. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, junho.
xi Idem.
xii KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 186; KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, p. 2, c. 1, i. 55; KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 4, i. 24.
xiii XAVIER, Francisco C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. 59. ed., Rio de Janeiro, FEB, 2007, c. 36.
xiv XAVIER, Francisco C.; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois mundos. Pelo Espírito André Luiz. 25. ed., Rio de Janeiro, FEB, 2008, p. 1, c. 2 e 17
xv KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, p. 2, c. 4, i. 74, q. XXI.

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