Acolhendo famílias em situação de vulnerabilidade social em grupos de estudo

Daniel Salomão Silva

Como abordado anteriormente nessa revista,[1] fundamental é refletir sobre as formas mais adequadas de se acolher os diferentes grupos sociais que buscam as casas espíritas, especificamente aqueles identificados como em situação de vulnerabilidade social. Essa expressão, ainda conceitualmente imprecisa, tem englobado, nas últimas décadas, condições de pobreza, “fragilidade de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a bens e serviços públicos”, [2] como à saúde e à educação. Em nossos centros espíritas, todos esses aspectos têm sido detectados nos trabalhos voltados à assistência e à promoção sociais, porém, temos acolhido adequadamente as famílias que nos procuram nessa condição?

Conforme apontado no artigo supracitado,[3] é possível que parte dos frequentadores dos nossos trabalhos sociais estejam assistindo às palestras públicas e trazendo suas crianças à evangelização infantil apenas com o objetivo de receber cestas básicas ou outros benefícios materiais, o que não nos parece adequado. Afinal, exigindo a participação religiosa como pré-requisito para apoio social, estamos vinculando obrigatoriamente suas necessidades básicas a algo que talvez nem reflita suas crenças pessoais. Ao mesmo tempo, negando o apoio material aos que não desejam participar da exposição doutrinária, caminhamos contrariamente ao entendimento da caridade como propõe Kardec.[4]

Logo, sem contrariar as posturas já adotadas pelas instituições espíritas, esse texto propõe reflexões práticas na busca de um acolhimento efetivo das famílias socialmente vulneráveis em nossos trabalhos doutrinários, a partir das experiências pessoais do autor junto ao DAPSE e ao Grupo da Família da Fundação Espírita Aurílio Braga Esteves, e ao Grupo de Valorização da Vida da Sociedade Beneficente Sopa dos Pobres, em diálogo com apontamentos da obra Paulo e Estêvão, do Espírito Emmanuel, pela mediunidade de Chico Xavier. A experiência de Saulo de Tarso junto a Ananias e à primeira comunidade cristã de que brevemente participou é rica de ensinamentos sobre o tema.

Ainda em Damasco, logo após sua visão de Jesus e cura de sua cegueira, o futuro Apóstolo dos Gentios se viu na casa simples de uma lavadeira, cercado de “míseras criaturas da plebe”, “mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pedreiros rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades dolorosas”.[5] As discussões que presenciou não passavam pelas sutilezas teológicas com que Saulo estava acostumado, mas desenvolviam os ensinamentos de Jesus, ilustrados por Ananias “com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da sua experiência pessoal”.[6] Da mesma forma que não eram superficiais para alguém com instrução e formação religiosa, como Saulo, não destacavam pontos complexos para além da compreensão dos presentes. Logo, partindo desse exemplo e trazendo-o para a nossa realidade, podemos exercitar em nossos grupos essa mesma prática. Sem jamais deixar de expor os princípios básicos espíritas, devemos trabalhar prioritariamente a proposta prática evangélica, sempre associada a exemplos do cotidiano, como também fazia Jesus. Obras como Jesus no lar, do Espírito Neio Lúcio, pela mediunidade de Chico Xavier, contêm histórias totalmente aplicáveis a essa proposta.

Um segundo aspecto chama nossa atenção. Durante a reunião em Damasco, todos podiam falar e se sentiam à vontade para isso. Como descreve Emmanuel,

Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma ideia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam franca e confortadora alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés, lhaneza [candura] de trato sem laivos [marcas] de hipocrisia, porque, em regra, sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém deveria enganar.[7]

Alguns dos presentes não possuíam conhecimento profundo da mensagem de Jesus, mas traziam concepções religiosas próprias, oriundas do Judaísmo ou de outras tradições culturais. Contudo, não se sentiam tolhidos. O acolhimento oferecido deixava-os livres e tranquilos para fazer apontamentos. Naturalmente, quando inadequados, eram alvo de explicações daqueles mais experientes, que, respeitosamente, expunham a proposta cristã.

O público dos trabalhos assistenciais dos nossos centros muitas vezes tem características semelhantes. Em nossa experiência, é comum observar frequentadores trazendo pontos de vista evangélicos, apontamentos e questões sobre o inferno e o diabo, além de discordâncias de princípios espíritas, como a reencarnação e a mediunidade. Todavia, como fazia Ananias, é importante deixá-los à vontade para expressar suas opiniões, o que permitirá uma resposta fraterna dos coordenadores, que, sempre respeitando a liberdade de consciência do frequentador, explicarão o ponto de vista espírita sobre a questão, sem buscar convertê-lo. Ao contrário, uma postura inibidora afastará o frequentador e impedirá que descubramos suas reais dúvidas e demandas. Repetindo, nosso objetivo deve ser o de atrair o frequentador ao grupo espírita pela mensagem espírita e não por apenas uma demanda material, ainda que justa.

O trecho supracitado destaca ainda a leveza da reunião, que permitia momentos de discussões “leves e simples”, com comentários alegres e confortadores, e não uma postura extremamente rigorosa, presa rigidamente ao tema da exposição. Como era o caso dos membros da comunidade damascena, é comum em nossos grupos que recebem a população vulnerável, a presença de frequentadores sem a experiência de uma sala de aula ou de ouvir exposições extensas. Não podemos esperar deles uma atenção de nível universitário. Alívios cômicos, sempre respeitosos, associações do tema a situações cotidianas, por parte dos frequentadores ou dos coordenadores, devem ser permitidos com moderação. As pessoas devem estar felizes em participar do grupo, o que não o torna menos sério.

Algo que também significava acolhimento era a aproximação sincera da liderança religiosa dos cristãos de Damasco. Como aponta Emmanuel,

Comumente, segundo o hábito das primeiras células cristãs do primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto [alimento] aos discípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura, em nome do Senhor. Saulo serviu-se do bolo simples, enternecidamente. Para sua alma, o cibo [alimento] mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal. A água clara e fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluido de amor que partia de Jesus, comunicando-se a todos os seres.[8]

Os presentes, dos mais simples aos mais instruídos, dos mais iniciantes às lideranças, comiam juntos. Não havia alimentos especiais, mesas separadas ou distanciamentos. Ainda que não seja uma regra em nossos grupos de estudo espíritas, naqueles em que há oferecimento de lanche ou almoço, é fundamental uma postura fraterna real, em que todos sejam efetivamente iguais enquanto cristãos. Por mais diferentes que sejam nossas origens sociais, pelo menos naquele momento podemos comer juntos, como irmãos e amigos. O próprio Saulo teve essa percepção, “de que nas genuínas comunidades do Cristo, a amizade era diferente de tudo que lhe dava expressão nos agrupamentos mundanos”. Afinal, agora “compreendia que a palavra ‘irmão’, largamente usada entre os adeptos do ‘Caminho’, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias conquistaram-lhe o coração”.[9]

Naturalmente, ainda que seguindo as sugestões acima, não negamos que, para assumir a tarefa de exposição ou coordenação desses grupos, seja necessário certo tato, linguagem adequada e experiência. Por exemplo, nem todo o vocabulário trazido pelo expositor será compreendido imediatamente pelo público, o que pode ser resolvido pelo uso de sinônimos. Além disso, é possível que alguns frequentadores sejam indisciplinados, o que demanda um “jogo de cintura” do coordenador, que deve manter a disciplina de forma fraterna.

Por fim, importante é salientar que não encaramos aqui os grupos voltados ao público em situação de vulnerabilidade social de forma preconceituosa, como inferiores ou merecedores de menos dedicação e seriedade, muito menos seus frequentadores. Trata-se de assumir com honestidade uma situação planetária de forte desigualdade social, com consequente desigualdade educacional e possível desestruturação familiar, aspectos muito presentes no público que busca auxílio material em nossas casas espíritas. Nesse sentido, em resumo, entendemos como importante:

  1. Sem jamais deixar de lado os princípios espíritas, válidos e importantes para todos, devemos trabalhá-los prioritariamente a partir da proposta prática evangélica, sempre associada a exemplos do cotidiano, como também fazia Jesus. A simplicidade de suas parábolas ou dos discursos trazidos por Neio Lúcio em Jesus no Lar não é indicativa de superficialidade. Em verdade, cabe ao coordenador e ao público aprofundar os conceitos de forma compreensível, em diálogo com sua realidade;
  • O grupo deve se sentir à vontade para expressar seus pensamentos, sem receio de ser tolhido ou de falar alguma “besteira”. A presença de iniciantes ou mesmo de pessoas não espíritas não deve ser um problema. Ao trazer alguma posição contrária à espírita, o frequentador deve ser esclarecido fraternalmente, sem ter a sua crença desmerecida, mas sendo informado sobre a posição doutrinária quanto ao assunto: pode concordar com ela ou não;
  • O coordenador, sem abrir mão de sua autoridade e responsabilidade pelos trabalhos, deve se aproximar dos frequentadores. Discutir em círculo, comer junto, conversar e rir antes e depois da atividade são atitudes acolhedoras que efetivamente mostram aos frequentadores que são bem-vindos. Se precisam do apoio material, não foram ao centro espírita só por esse motivo, mas porque gostam de estar lá e de ouvir a proposta espírita.

[1] ALVES, Aníbia A. M. Duarte. Reflexões sobre a assistência e a promoção social espíritas. In: O Médium, nº 734, pp. 9 a 12, Juiz de Fora: AME/JF, 2020 [acesso em omedium.amejf.org.br/2020/09/15/reflexoes-sobre-a-assistencia-e-a-promocao-social-espiritas/].

[2] CARMO, Michelly Eustáquia do; GUIZARDI, Francini Lube. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. In: Cadernos Saúde Pública, nº 34, v. 3, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, 2018.

[3] ALVES, Aníbia A. M. Duarte. Reflexões sobre a assistência e a promoção social espíritas. In: O Médium, nº 734, p. 10, Juiz de Fora: AME/JF, 2020.

[4] KARDEC, Allan. Do projeto de caixa geral de socorro e outras instituições para os espíritas. In: Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos, julho/1866, Catanduva: Edicel, 2016.

[5] XAVIER, Francisco C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel. 45ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2020, 2. p., c. 1.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

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