Diálogo inter-religioso: Paulo e as restrições alimentares judaicas

Daniel Salomão

Na edição anterior, partimos do diálogo de Paulo com os atenienses para discutir questões sobre a tolerância e o diálogo inter-religiosos, destacando sua postura clara e respeitosa, ao defender seus pontos de vista, e resignada perante o desprezo e o deboche dos ouvintes.[1] Ainda que distante de nós em séculos, o Apóstolo dos Gentios se mostra à frente do nosso tempo em bom senso e maturidade espiritual. Neste artigo, observando a forma como lidou com diferenças culturais entre os primeiros cristãos, somos convidados à reflexão sobre como temos lidado com nossos irmãos de outras confissões religiosas, particularmente, cristãs. Reconhecendo a pluralidade de pensamentos religiosos como um fato e a caridade como pilar central da mensagem cristã, é inquestionável para nós a necessidade de uma interação pacífica entre religiosos de diferentes tradições.

Em sua trajetória de divulgação do Evangelho para além da Palestina, Paulo de Tarso teve de lidar com diferentes culturas, das mais simpatizantes às mais refratárias ao pensamento judaico. A comunidade cristã de Antioquia da Síria, para a qual foi conduzido por Barnabé e onde foi plenamente acolhido (At 11:25-26) após período de produtiva solidão,[2] era composta por cristãos de origem judaica e cristãos de origem gentílica, sendo para ele verdadeira escola de convivência e tolerância com o diferente. Com minoria judaica, na comunidade de Antioquia vivia-se “sem qualquer preocupação com as disposições rigoristas do Judaísmo” e “os israelitas, distantes do foco das exigências farisaicas, cooperavam com os gentios, sentindo-se todos unidos por soberanos laços fraternais.”[3]

Contudo, após o retorno de Barnabé e Paulo de sua primeira viagem (At 14:26-27), ocorreu um episódio importante, ilustrativo das questões enfrentadas pelos primeiros cristãos. Na ausência dos missionários, forte influência da comunidade de Jerusalém chegou à Antioquia, gerando, entre as próprias lideranças, discordâncias quanto ao cumprimento ou não dos costumes judaicos (At 15:1-2). Segundo Emmanuel, “uns eram partidários da circuncisão obrigatória, outros se batiam pela independência irrestrita do Evangelho. Eminentemente preocupado, o pregador tarsense observou as polêmicas furiosas a respeito de alimentos puros e impuros.”[4] O próprio Pedro, convidado a visitar a cidade para auxiliar na questão, titubeou entre os dois polos. Como explica Paulo,

Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele se tinha tornado digno de censura. Com efeito, antes de chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraía e andava retraído, com medo dos circuncisos. Os outros judeus começaram também a fingir junto com ele, a tal ponto que até Barnabé se deixou levar pela sua hipocrisia. Mas quando vi que não andavam retamente segundo a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, diante de todos: se tu, sendo judeu, vives à maneira dos gentios e não dos judeus, por que forças os gentios a viverem como judeus? (Gl 2:11-14)

Se o trecho acima, como diz Emmanuel, refere-se a um episódio anterior,[5] não deixa de ser uma antecipação dos importantes debates que ocorreriam entre Pedro e Paulo em Antioquia e entre as lideranças cristãs em Jerusalém, como narrado em At 15. As conversas destacaram inicialmente a questão da necessidade ou não da circuncisão entre cristãos de origem não judaica, mas acabaram por atingir outras questões. Vendo-se vencido perante os argumentos de Paulo e Pedro, Tiago concordou em dispensar essa prática como obrigação aos gentios para que se tornassem cristãos, mas pediu a manutenção de três costumes: “os pagãos ficavam isentos da circuncisão, mas deviam assumir o compromisso de fugir da idolatria, evitar a luxúria e abster-se das carnes de animais sufocados.”[6] Um obstáculo estava vencido, mas outro mereceria ainda frequentes debates nas comunidades de maioria gentílica, como indicam a primeira carta de Paulo aos coríntios e sua carta aos romanos. Na verdade, se a circuncisão era verificada apenas pelas lideranças judaicas, “as leis alimentares provam ser um caso mais difícil; como ritos públicos facilmente abertos para se ver, elas são constantemente uma questão a ser discutida.”[7]

Na carta aos romanos, Paulo toca no assunto:

Acolhei o fraco na fé, sem querer discutir suas opiniões. Um acha que pode comer de tudo, ao passo que o fraco só come verdura. Quem come não despreze aquele que não come; e aquele que não come não condene aquele que come; porque Deus o acolheu. (Rm 14:1-3)

O texto denuncia a existência de discordâncias entre os cristãos romanos quanto aos costumes alimentares. As carnes compartilhadas entre judeus e gentios deveriam ter sua origem esmiuçada, pois as provenientes de sacrifícios eram consideradas impuras pelos primeiros. Contudo, “levadas ao mercado, como distinguir umas das outras?”[8] Radicalizando essa preocupação, alguns judeus até mesmo defendiam que só se poderia comer com gentios se eles se abstivessem “de certos alimentos supostamente dedicados aos ídolos.”[9] Porém, diante disso, o Apóstolo dos Gentios defendeu que todos os cristãos devem comer juntos. Tanto os “fracos”, que preferiam comer apenas verduras para evitar o risco de se alimentarem de carnes inadequadas, quanto os “fortes”, que não se preocupavam com isso, deveriam se respeitar e conviver bem.[10] Afinal, para Paulo, essas restrições alimentares eram desnecessárias.[11] Em suas palavras, “eu sei e estou convencido no Senhor Jesus que nada é impuro em si. Alguma coisa só é impura para quem a considera impura” (Rm 14:14). Possivelmente seguindo a orientação de Jesus, de que “não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isto sim o torna impuro” (Mt 15:11), o discípulo tarsense já se via livre das amarras da Lei, considerando-se um dos “fortes” (Rm 15:1). Além disso, falando aos coríntios,

Por conseguinte, a respeito do consumo das carnes imoladas aos ídolos, sabemos que um ídolo nada é no mundo e não há outro Deus a não ser o Deus único. (…) para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos. (1Cor 8:4-6)

Ou seja, o próprio entendimento judaico de que não existem outros deuses tornava o caráter idolátrico da carne sem fundamento. Contudo, é na atitude paulina perante o pensamento contrário que vamos encontrar importante lição também para os dias de hoje. Segundo ele,

Tomai cuidado, porém, para que essa vossa liberdade não se torne ocasião de queda para os fracos. Se alguém te vê assentado à mesa em um templo de ídolo, a ti que tens a consciência esclarecida, porventura a consciência dele, que é fraco, não será induzida a comer carnes imoladas aos ídolos? E, assim, por causa da tua ciência perecerá o fraco, esse irmão pelo qual Cristo morreu! Pecando assim contra vossos irmãos e ferindo a sua consciência, que é fraca, é contra Cristo que pecais. Eis porque, se um alimento é ocasião de queda para meu irmão, para sempre deixarei de comer carne, a fim de não causar a queda de meu irmão. (1Cor 8:9-13)

Paulo entendia que certo sacrifício era necessário para se atingir algo mais importante, afinal, mesmo agindo corretamente em consciência, o simples fato de comer uma carne dedicada a outras divindades poderia ser motivação para a queda de outro. Em respeito à ignorância ou mesmo à suscetibilidade dos que se submetiam aos rigores judaicos, era necessário abrir mão da própria liberdade. Uma defesa radical de posição só promoveria desunião. Como também afirmou aos romanos, “se por causa de um alimento teu irmão fica contristado, já não procedes com amor” (Rm 14:15). O último trecho que destacamos deixa essa posição ainda mais clara.

Ainda que livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão sujeitos à Lei, fiz-me como se estivesse sujeito à Lei — se bem que não esteja sujeito à Lei —, para ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei. Para aqueles que vivem sem a Lei, fiz-me como se vivesse sem a Lei — ainda que não viva sem a lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo —, para ganhar aqueles que vivem sem a Lei. Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E isto tudo eu faço por causa do Evangelho, para dele me tornar participante. (1 Cor 9:19-23)

Essa atitude, aparentemente oportunista ou relativista, guarda, em verdade, o real comprometimento de Paulo com o essencial da mensagem cristã em detrimento do acessório. Do principal ele nunca abriu mão, como ficou claro em sua discordância da postura de Pedro junto aos antioquenos. Aquilo que ferisse a caridade não poderia ser aceito. Contudo, apenas uma postura tolerante e compreensiva poderia promover essa mesma caridade. Perante os que esperavam dele adesão ao costume alimentar judaico, aderia. Perante os “fortes”, ao contrário, vivia insubmisso à lei judaica civil, mas sempre fiel à “lei de Deus”.

Trazendo essa conclusão paulina para os dias de hoje e reconhecendo diferenças entre as próprias tradições cristãs, propomos uma reflexão em prol de um trabalho mais unido, que priorize a caridade, sem que cada confissão religiosa abra mão de seus preceitos. Nessa direção, desde suas bases, o Espiritismo é aberto ao diálogo com outras religiões, nem mesmo propondo que alguém abjure “sua religião ao participar de uma reunião espírita”.[12] Como entendia Kardec,

O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; ele é de todas, e não é de nenhuma em particular; é por isso que não diz a ninguém para mudá-la; deixa cada um livre para adorar a Deus à sua maneira, e observar as práticas que a sua consciência lhe dita, tendo Deus mais em conta a intenção do que o fato.[13]

Segundo O Livro dos Espíritos, a verdadeira boa intenção, a adoração do coração, é o que importa.[14] Logo, “sentar na mesma mesa” e respeitar as “restrições alimentares” de cada um, abrindo mão de questões que possam soar polêmicas, mas sem jamais negar o essencial, é condição fundamental para a união dos religiosos em prol da caridade. Ao semear essas ideias, não propomos a diluição ou a ocultação dos pressupostos espíritas em meio à diversidade religiosa, mas, em torno de pontos doutrinários/teológicos comuns, uma eventual abertura a encontros, debates fraternos e, principalmente, ações conjuntas pelo bem do próximo. Por exemplo, muitas vezes, em bairros de periferia, observamos pequenas instituições cristãs que, sozinhas, não conseguem sair de um trabalho apenas assistencial para um trabalho também promocional, que proporcione a reintegração do assistido à sociedade ou ao mercado de trabalho. Todavia, realizando parcerias, a despeito das diferenças de pensamento religioso, não seria possível uma ação mais ampla? Além disso, mesmo em trabalhos apenas assistenciais, como a doação de cestas básicas, uma breve troca de informações, produtos e estratégias entre as instituições religiosas envolvidas já pode ser bem enriquecedor.

Devemos avaliar com cuidado até que ponto nossas divergências quanto à identidade de Jesus, ao mundo espiritual, à realidade ou não da reencarnação e da mediunidade, entre outras, precisam ser um empecilho a uma união em prol do bem comum. Afinal, Jesus “não faz da caridade apenas uma das condições para a salvação, mas a única condição”,[15] acima de outras demandas. Parafraseando Paulo, se determinada diferença de entendimento religioso pode ser “ocasião de queda para meu irmão”, devemos avaliar se não cabe, para um fim nobre, debatê-la em outra ocasião.

O entendimento de Kardec é ainda mais ousado. Acreditando em uma unidade de pensamento relativa à “sorte futura das almas” após a morte, a partir das contribuições filosóficas e cientificas do Espiritismo, compreende neste “o primeiro ponto de contato entre os diversos cultos, um passo imenso para a tolerância religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a completa fusão”, não em torno da religião espírita ou de qualquer outra, mas ao redor da religião do amor universal.[16] Mesmo colocando essa expectativa como ainda distante, está na hora de começar a caminhar nessa direção.


[1] SILVA, Daniel Salomão. Diálogo inter-religioso: a experiência de Paulo em Atenas. Revista O Médium, AME/JF, n. 744, p. 10-12, mar/abr/2022.

[2] XAVIER, Francisco C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel, 45a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2020, 2a p., c. 4.

[3] Idem.

[4] Idem, 2a p., c. 5.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] SEGAL, Allan. Paulo, o convertido: apostolado e apostasia de Saulo fariseu. São Paulo: Paulus, 2010, c. 7.

[8] KREMER, Ruy. Paulo, um homem em Cristo. Rio de Janeiro: FEB, 2011, c. 13.

[9] SEGAL, Allan. Paulo, o convertido: apostolado e apostasia de Saulo fariseu. São Paulo: Paulus, 2010, c. 7.

[10] Cristãos de origem judaica e gentílica compunham o grupo dos “fracos”. Ex-pagãos também temiam o contato com seus antigos costumes, como aponta BARBAGLIO, Giuseppe (As cartas de Paulo I. São Paulo: Loyola, 1989, p. 268).

[11] SEGAL, Allan. Paulo, o convertido: apostolado e apostasia de Saulo fariseu. São Paulo: Paulus, 2010, c. 7.

[12] KARDEC, Allan. Viagem espírita em 1862 e outras viagens de Kardec. Rio de Janeiro: FEB, 2005, “Instruções particulares…”, XI.

[13] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. Catanduva: EDICEL, 2016, fev/1862.

[14] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2009, q. 653 e 654.

[15] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 15, i. 3.

[16] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo. 1ª ed., Rio de Janeiro: FEB, 2009, 1a p., c. 1, i. 14.

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