Amores mais diversos

Área da Família da AME/JF

Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor procede de Deus. Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
(I João 4:7)

Em sua primeira carta, o apóstolo João exorta ao amor que devemos ter uns para com os outros, esclarecendo que a fonte originária de todo amor é Deus. Usando a palavra amor em sua tradução grega ágape, ou caritas, em latim, o discípulo amado se refere ao amor fraterno, abrangente, que promove a comunhão; que não exclui. Paulo, em sua conhecida primeira carta aos Coríntios (13: 1-13), também se refere a esse amor: “mesmo que eu fale em línguas, a dos homens e a dos anjos, se me falta o amor, sou um metal que ressoa, um címbalo retumbante.” 2

Quando falamos de acolhimento ao próximo, estamos falando desse amor/caridade que define a nossa filiação divina. Não seria diferente do acolhimento que é feito a grupos que sofrem algum tipo de exclusão, seja ela social, cultural ou religiosa. No livro A Gênese, Kardec aponta que o Espiritismo é a doutrina mais apta para o movimento de regeneração, justamente por seu caráter moralizador e progressista.

O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências de progresso, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto, do que qualquer outra doutrina, a secundar o movimento de regeneração; por isso, é ele contemporâneo desse movimento. 3

Ao compreendermos que o Espiritismo é o Cristianismo redivivo, volvemos a essa boa nova para tratarmos do acolhimento a todos sem distinção, exemplificado por Jesus e seus discípulos. Em Atos dos apóstolos, temos uma narrativa muito interessante a respeito do acolhimento dos chamados gentios4 à doutrina do Cristo. Essa situação se passa com o apóstolo Felipe e um eunuco5 que ele encontra no caminho:

 […] e eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinha ido a Jerusalém para adoração, regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías.

E disse o Espírito a Felipe: Chega-te, e ajunta-te a esse carro. E, correndo, Felipe ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês?

E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Felipe que subisse e com ele se assentasse.

 E o lugar da Escritura que lia era este: foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia; assim não abriu a sua boca. Na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento; e quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra.

E, respondendo o eunuco a Felipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de algum outro?

 Então Felipe, abrindo a sua boca, e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus.

  E, indo eles caminhando, chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que eu seja batizado?

E disse Felipe: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Felipe como o eunuco, e o batizou.6

Essa passagem é muito elucidativa quanto ao acolhimento de Felipe, reproduzindo na simbologia do batismo, a mensagem cristã de amor ao próximo. Se não compreendemos o contexto social da época no que diz respeito a um homem eunuco, a passagem pode parecer simples, porém, quando nos aprofundamos nos pré-conceitos referentes às questões sexuais, conseguimos perceber a grandeza do ato de Felipe.

No contexto judaico em que Jesus vivia, havia uma expectativa bem explícita com relação ao papel masculino, e este era o de gerar filhos. Essas expectativas eram de ordem criacional, logo, o homem que não gerasse filhos era um excluído, alguém que não pertencia a Deus. No tratado de Jebamote, do Talmude7, o rabino Eliezer diz que “aquele que não tem uma esposa não é homem, pois é dito: homem e mulher os criou… e os chamou Adão” (Gn 5.2 – Jeb. 63a). No mesmo tratado, mais adiante, o rabino Eliezer diz que “aquele que não se envolve com procriação é como quem derrama sangue”, e é respondido pelo rabino Jacó, que diz que tal homem “diminui a imagem divina” (Jeb. 63b). Percebemos, assim, o que significava ser um eunuco à época de Jesus, alguém excluído e que até mesmo depunha contra a perfeição divina. Argumento usado até hoje quando se quer difamar ou violentar um companheiro(a) pertencente à comunidade LGBTQIAP+.

Compreendendo as questões que sempre envolveram o tema da sexualidade, tracemos um paralelo entre a passagem de Atos dos apóstolos e o acolhimento aos companheiros da comunidade LGBTQIAP+, bem como o das suas famílias, nas casas espíritas. Na Revista Espírita de 1868, Kardec trata do que deve ser uma sociedade espírita:

(…) pela comunhão dos homens, se assistem entre si, e ao mesmo tempo assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações entre o mundo visível e o mundo invisível não são mais individuais, são coletivas, por isto mesmo são mais poderosas para o proveito das massas, como para o dos indivíduos. Numa palavra, estabelecem a solidariedade, que é a base da fraternidade. Ninguém trabalha para si só, mas para todos, e trabalhando por todos, cada um aí encontra a sua parte. É isto que o egoísmo não entende.8

O codificador orienta, então, que uma casa espírita tem, como base de seu funcionamento, o acolhimento fraterno a todos, compreendendo que é no trabalho junto às diferenças que há o crescimento individual e grupal, e, consequentemente, o desenvolvimento moral e social, fim objetivado da doutrina espírita.

A Doutrina Espírita, melhor do que qualquer outra, põe em relevo a necessidade da melhoria individual […] Ela não se limita a preparar o homem para o futuro, forma-o também para o presente, para a sociedade. Melhorando-se moralmente, os homens prepararão na Terra o reinado da paz e da fraternidade.”9

Diante dessa compreensão, a Área da Família, da Aliança Municipal Espírita de Juiz de Fora (AME/JF), está elaborando o projeto Amores + Diversos, com o intuito de abrir o diálogo nas casas sobre como temos realizado o acolhimento à população LGBTQIAP+. Esse diálogo visa possibilitar que tenhamos material e instrumentos para tratar do assunto com respeito e dignidade, para que não haja nenhum tipo de constrangimento da parte de um frequentador e de sua família, que buscam a casa e não encontram o acolhimento necessário.

Sabemos que o assunto merece sérias reflexões e, por isso, este artigo é apenas um impulso inicial do projeto, na intenção de começarmos um movimento muito maior de acolhimento e atenção em nossas casas.

1 Amores + Diversos é o título do projeto da Área da Família da Aliança Municipal Espírita de Juiz de Fora, que visa a auxiliar as casas espíritas no recebimento e acolhimento dos membros da comunidade LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, + outras identidades) bem como de seus familiares, no intuito de fazer da casa espírita um lugar de escuta respeitosa e de segurança para os companheiros que a procuram em busca do alimento espiritual.

2 ICoríntios 13:1

3 KARDEC, Allan. Os tempos são chegados In: A Gênese, cap. XVIII ítem 25.1868

4 A palavra gentio designa um não judeu ou israelita.

5 Eunuco é um homem que teve sua genitália removida parcial ou totalmente, por motivação bélica, punição criminal, imposição religiosa ou para servir em funções sociais específicas.

6 Atos dos Apóstolos 8:27-38

7 O Talmude é uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, à ética, costumes e história do judaísmo.

8 KARDEC, Allan. Sessão Anual Comemorativa dos Mortos. Discurso de abertura pelo Sr. Allan Kardec: O Espiritismo é uma religião? In: Revista Espírita. Dezembro de 1868.

9 KARDEC, Allan. Credo Espírita In: Obras Póstumas, Preâmbulo. 1869

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