Considerações acerca da angústia humana

José Fernando

Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.”
(Paulo: 2 Coríntios 4:8)

Ingmar Bergman (1918/2007), consagrado diretor do chamado Cinema Existencialista, encantou as gerações das décadas de 60 e 70 com seus filmes que realizavam uma verdadeira cirurgia psicológica nos mais intrigantes sentimentos humanos. À maneira de um hábil cirurgião da alma, penetrava-a profundamente com sua câmera, à guisa de um bisturi investigativo, expondo sentimentos viscerais, confusos e atormentados dos homens de sua época.

De nacionalidade sueca, procurava retratar aquela sociedade que, desde aquele tempo, já se apresentava como um país desenvolvido economicamente e que propiciava uma vida de estabilidade e paz aos seus cidadãos, mantendo uma neutralidade que hoje não existe mais. Contudo, esse estado de bonança social estava estremecido pelas pressões políticas internacionais daquele tempo. O mundo vivia a expectativa de uma Terceira Grande Guerra entre a antiga União Soviética e os Estados Unidos da América do Norte, configurada no episódio que ficou conhecido como Guerra Fria. Concomitantemente, a China, marxista-leninista de então, ameaçava entrar no conflito e alardeava estar finalizando seu projeto de construção de uma bomba atômica.

Bergman captou com maestria esse clima de angústia existencial, retratando-o com perfeição em seu aplaudido filme Luzes de inverno. Diretor perfeccionista que era, inicia a película conduzindo o cinegrafista a filmar em um ambiente asfixiante, mostrando, em preto e branco, a imagem de singela nave de uma igreja secular de uma cidadezinha do interior da Suécia. O cameraman fecha em zoom, lentamente, até a sacristia, concentrando a imagem, em close, nas feições angustiadas do ator, que representa um cidadão de meia idade, em plena crise de pânico, indagando do sacerdote se Deus permitiria uma hecatombe nuclear que, por insistente pressão dos jornais daquele período, estava na iminência de eclodir.

O enigmático diretor da película orienta o enquadramento dos rostos dos personagens e instiga os atores a representarem fria e angustiante perplexidade em suas feições trágicas, com olhos esbugalhados de silencioso pavor. A atmosfera nebulosa, típica de um filme noir, com raras cenas externas e onde predominam paisagens lúgubres de atroz inverno – pontilhadas de árvores de galhos secos e retorcidos, em meio ao branco gélido da neve –, vai conduzindo o espectador a comungar deste cenário asfixiante, aguardando, aflito, o desenrolar do colóquio entre o personagem principal e o sacerdote, a contragosto, a atender o seu paroquiano em sua profunda crise existencial. “Por que, nesta hora tão grave, esse silêncio de Deus?” Indaga o fiel em apuros. O close se volta para a face insegura e tensa do religioso, que exprime sua total impotência e medo diante de inusitado questionamento, tão ríspido e tão transcendental.

Isso em 1962, ano do lançamento do filme. E agora, em 2025? Algo mudou?

A humanidade vive hoje à sombra de outra catástrofe nuclear. Sessenta e três anos são passados e a mesma sinistra expectativa do personagem da história citada retorna ao cotidiano das massas populares, angustiadas sob a pressão da mídia que, em tempo real, divulga a imprudência e o disparate das palavras e atos de certos atuais mandatários do poder mundano.

Reflitamos, portanto, sobre a angústia, esse furtivo sentimento que muitos confundem com a sensação de ansiedade. No léxico, “angústia” (do latim angustia) significa estreiteza, espaço reduzido, carência e falta. É um medo vago ou indeterminado, sem objeto real ou atual. Trata-se de uma disposição ontológica, isto é, da essência do ser humano. Nascemos com ela.

Por sua vez, a ansiedade é um estado patológico, doentio quando exacerbado em nosso íntimo. A ansiedade é expressada no agora, na prática do dia a dia. O ansioso está sempre com o medo à frente. Ele verifica três vezes se fechou a porta, teme ser seguido ou agredido. Toma para si um arsenal de precauções que só fazem aumentar esse medo. Quer dizer, enquanto vivemos na atroz angústia da expectativa pelo futuro, aparecem os sintomas da ansiedade. Assim, acabamos perdendo a serenidade em nosso cotidiano.

Seria a angústia, portanto, um sentimento novo, próprio dos tempos acelerados de hoje?

A angústia, por ser um sentimento nato, acompanha a Humanidade desde os tempos imemoriais. Filosoficamente, a angústia é o sentimento do nada. Ela domina toda a temática da moderna filosofia existencialista, nomeada por autores como Soren Kierkegaard, Martin Heidegger, Jean Paul Sartre e, como percebemos no filme em questão, pelo aclamado cineasta Ingmar Bergman. Esses escritores e filósofos contemporâneos dão à angústia um valor exagerado, principalmente pelo enfrentamento do nada que, segundo eles, espera-nos no além-túmulo.

Na antiguidade grega (1), ao escrever a parábola “O mito da caverna”, Platão parte do inesquecível livro A República, vislumbrando o problema da angústia na sua distinção entre o mundo sensível (do corpo físico) e o verdadeiro (o plano das ideias – para nós, espiritual). O prisioneiro da caverna somente podia conhecer os objetos projetados pela sombra da fogueira acesa em seu interior. Porém, intuitivamente, sentia angústia pelo desconhecido e inalcansável sol radiante que, para ele, quem sabe, poderia existir lá fora. Para Platão, sair da angústia significava passar das trevas da caverna à luz do dia.

Para as religiões tradicionais (2), o ser humano vive no meio das trevas do mal desde a sua origem. Consoante é o relato bíblico de Adão e Eva, que, persuadidos pela serpente, escolheram comer do fruto proibido, desafiando diretamente a ordem divina. Esse ato simboliza a exclusão da autoridade de Deus e a tentativa de definir, por conta própria, o que é bom ou mau. E as consequências disso vão além do erro individual de Adão e Eva.

O catecismo da Igreja Católica leciona que o “pecado original” não é cometido, mas, sim, contraído; é um estado e não um ato, sem objeto real ou atual, compatível com a definição léxica de angústia. Já as religiões orientais a classificam como uma das consequências do “karma”, este ciclo, quase infinito, de causa e efeito gerado pelas atitudes e pensamentos de cada ser individualmente.

A Doutrina Espírita, por sua vez, apresenta considerações interessantes quando nos faz refletir sobre o cognominado “paraíso perdido”. Emmanuel, ao discorrer sobre a trajetória histórica da Humanidade em seu belo livro A caminho da luz (3), menciona a chegada na Terra, em seus primórdios, de Espíritos oriundos da Constelação de Capela. O nobre mentor refere-se a entidades espirituais que, por conta de suas tendências ainda voltadas para o mal, foram banidas de Capela e encarnaram na Terra, àquele tempo, planeta primitivo.

Inadaptadas à vida em Capela, orbe já regenerado, estes Espíritos, acostumados a viverem num globo progressista e culturalmente adiantado, tiveram suas vidas transmutadas de forma radical. Em concordância à fala de Emmanuel:

“… seriam degredados na face obscura do planeta terrestre; andariam desprezados na noite dos milênios da saudade e da amargura; reencarnar-se-iam no seio das raças ignorantes e primitivas, a lembrarem o paraíso perdido nos firmamentos distantes.”

Interessante citar que essa hipótese, apresentada por Emmanuel, também foi defendida pelo escritor suiço Erich Von Däniken em seu memorável livro Eram os deuses astronautas?, publicado em 1968. Na obra, Erich considera que construções enigmáticas como as pirâmides incas e egípcias, os “moais” da Ilha de Páscoa, as linhas perfeitas de Nazca e outros monumentos antigos foram construídos por extraterrestres habilidosos e culturalmente mais avançados do que os humanos daquele recuado tempo.

Outra singular reflexão nos trouxe o Espírito François de Genève no texto “A melancolia” (4), em O Evangelho segundo o Espiritismo, quando assim se expressou:

Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos leva a considerar amarga a vida? É que vosso Espírito, aspirando à felicidade e à liberdade, se esgota, jungido ao corpo que lhe serve de prisão, em vãos esforços para sair dele. Reconhecendo inúteis esses esforços, cai no desânimo e, como o corpo lhe sofre a influência, toma-vos a lassidão, o abatimento, uma espécie de apatia, e vos julgais infelizes.”

Essa angustiosa melancolia muitas vezes se apossa de nós ao contemplarmos, extasiados, a fascinante alternância de cores do crepúsculo solar vespertino. “Então, por que, nesta hora tão grave, este silêncio de Deus?” Indagou o protagonista principal do filme em questão. E, ainda hoje, suspiram angustiosos os incrédulos e desesperançados homens de pouca fé.

Compreensível a atitude do sacerdote luterano do filme de Ingmar Bergman que, surpreso e aturdido, manteve-se em grave silêncio, se sentindo impossibilitado de consolar seu aflito consulente. Ateve-se, em sua mudez, ao imperativo da fatalidade dos chamados “mistérios de Deus”.

Allan Kardec, em seus comentários inseridos em O Livro dos Espíritos (5) acerca da origem do Criador, do Princípio Inteligente e do Espírito, em consonância com as religiões tradicionais, também endossa essa tese afirmando:

“Tudo isso são mistérios que fora inútil querer devassar e sobre os quais nada mais se pode fazer do que construir sistemas.”

Felizmente nossa amada Doutrina, profundamente sensata e otimista, nos traz, em seu conjunto, consolo, paz e esperança ao provar, constantemente, por meio da prática sagrada da mediunidade com Jesus, que a morte não é o fim de tudo e que a sobrevivência do Espírito e a possibilidade da reencarnação em novos mundos deste Universo infinito é real, lógica e incontestável.

Finaliza Kardec:

“O Espiritismo dá a ver as coisas de tão alto, que, perdendo a vida terrena três quartas partes da sua importância, o homem não se aflige tanto com as tribulações que a acompanham. Daí, mais coragem nas aflições, mais moderação nos desejos”. (6)

Afinal, Jesus é ou não é a pura expressão do verdadeiro amor? E, como disse certo poeta:

Angústias, derrotas, danos,
Tudo isso tenho visto.
Só não vejo desenganos
Na estrada de Jesus Cristo. (7)

  1. Título: A República Autor: Platão Editora: Independente – Ano: 380 a.C. – 1ª Edição – Nº de Pg: 467 – Licença: Domínio Público.
  2. AQUINO, prof. Felipe – Livro “O Pecado Original” – O Que a Igreja Ensina. Pg.224 – Editora “Canção Nova”
  3. XAVIER, Francisco Cândido – pelo Espírito Emmanuel – Livro “A Caminho da Luz” 21ª Edição- FEB-Cap. III- Espíritos Exilados na Terra- pag.35.
  4. KARDEC, Allan livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo – Edição Histórica – 131º ed. FEB – Cap.V – item 25 – A Melancolia.
  5. KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos: [tradução de Guillon Ribeiro] -93. Ed. – 2imp. (Edição Histórica) -Brasília: FEB,2016- Parte Segunda – Capítulo XI pag.292.
  6. KARDEC, Allan – OLE idem – Cap. II – Parte Quarta-Conclusão – item VII – página 470.
  7. XAVIER, Francisco Cândido – livro Parnaso de Além -túmulo – Ed. FEB – pag. 132 – “Quadras”.

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *