A instigante trégua do Natal
José Fernando
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” – -Jesus (João,3:16)
Meados de dezembro e um forte clamor popular se percebe nas azáfamas das compras e nas intermináveis filas das lojas, supermercados e “shopping centers” por todo mundo ocidental. Como num passe de mágica os ouvidos humanos intercalam suas preferências musicais com o ritmo suave e jovial das músicas natalinas, tão antigas e tão atuais, que ecoam nos ambientes fechados dos prédios e residências como também nos calçadões, becos, nas avenidas das metrópoles e nas vielas mais singelas das aldeias campestres. Transeuntes, no corre-corre apressado da vida, entreolham-se com certa ternura e, palavras esquecidas no decorrer do ano como: “por favor”, “desculpe-me”, “como vai?” ouvem-se, repetidamente, estimulando o contato fraterno como se fossemos verdadeiramente da mesma família consanguinea.
Por conseguinte, não somente no exterior se apercebe a incrível mudança. É, mais ainda, no íntimo de cada ser humano que algo de extraordinário e belo aflora e que se torna claramente perceptível. Uma doce paz baixa à Terra envolvendo cada ser numa expectativa otimista e feliz nos fazendo esquecer e até perdoar as picuinhas hauridas na convivência competitiva, açodada e frenética do dia a dia.
Tudo isto só porque é Natal? Sim, só porque é Natal! Este presente divino oferecido à Humanidade para relembrar, todas as vezes que a Terra findar a sua órbita elíptica em torno do sol, em dezembro, que Jesus, o “Rei Solar”, foi oferecido em holocausto, pelo Criador do Universo como divino Redentor de Suas criaturas, ainda frágeis e vacilantes, na trajetória infinita do aperfeiçoamento que nos compete alcançar.
Fatos marcantes desta transformação humana, pena que tão temporária, avultam-se no decorrer dos séculos e milênios e não caberiam em escritos sucintos de algumas linhas. Hoje, em instantes tenebrosos de guerras e rumores de guerras, previstos por Jesus no Evangelho de Mateus, ocorre-nos à lembrança curioso fato sucedido durante a primeira guerra mundial.
Considerada por alguns historiadores como a mais letal das conflagrações de extensão mundial, a primeira grande guerra, com cerca de 20 milhões de mortos e em meio aos horrores da destruição, inacreditavelmente, deu causa a momentos inusitados de descontração e companheirismo, um armistício informal, comprovando a tese de que, na essência, todos somos bons.
(1) Nos últimos meses de 1914, nos arredores da cidade de Yprès, na Bélgica, travava-se uma renhida batalha com tanques, baionetas e artilharia pesada que fazia do local um verdadeiro inferno de fogo, fumaça e mortes. Soldados do antigo Império Alemão atacavam sem descanso as tropas francesas e inglesas aquarteladas em acampamentos precários e vulneráveis. Em dezembro de 1914, o imperador alemão Guilherme II havia enviado para o front germânico dezenas de pinheiros natalinos para seus militares na intenção de amenizar as agruras da guerra e minimizar psicologicamente as tormentas das intempéries ocasionadas por glacial inverno que cobria tudo formando um pesado tapete de neve cujo desconforto mais se aprofundava devido a cortantes e gélidos ventos. Na semana que antecedeu o Natal, soldados ingleses começaram a avistar filas de pinheiros decorados com símbolos natalinos que demarcavam as trincheiras alemãs. Intrigados passaram a ouvir o canto forte entoando a suave canção “Noite Feliz”, por parte dos inimigos. No relatório enviado a seus superiores o Capitão Sir Edward Husle, do exército real britânico expôs sua surpresa informando que: “Às 8:30, eu vi quatro alemães desarmados deixarem a sua trincheira e se dirigirem para a nossa. Eu mandei dois dos meus homens se encontrarem com eles, também desarmados, com ordens para que eles não ultrapassassem a metade do caminho entre as trincheiras, que distavam então de 350 a 400 jardas nesse ponto. Eram três soldados rasos e um padioleiro e o porta-voz deles disse que queria desejar a nós um Feliz Natal e esperava que nós, tacitamente, mantivéssemos uma trégua. Ele disse que havia morado em Suffolk, (Inglaterra) onde tinha uma namorada e uma bicicleta a motor.” Após este episódio, vários outros se verificaram na frente de guerra destacando a troca de presentes, como vinhos, charutos etc., ficando famoso um jogo de futebol entre ingleses e alemães tendo estes vencido o jogo.
Mas retornemos aos nossos dias. O que veremos logo após o Natal, no dia 26 de dezembro próximo? Sairemos às ruas e a azáfama do comércio se manterá em atividade agitada. Trocas de presentes, de lembrancinhas para os amigos que foram esquecidos na véspera; corridas aos mercados para providenciar a ceia de Ano Novo. Como num passe de mágica, um novo ritmo soará no ar. Músicas em alto volume, com ritmado primitivo prenunciando a festa carnavalesca que se antecipará com o “réveillon”, chegam a agredir os ouvidos mais sensíveis transformando o astral do ambiente em clima mais pesado e excitante. Também, no íntimo do povo, aquela ansiedade de antes retoma as rédeas da consciência humana deixando de lado a gentileza e o carinho da véspera, tão recente e já parecendo tão distante. Por conta desta incapacidade do ser humano de se manter em estado de espírito amável e solícito por pelos menos mais alguns dias no ano muitos, amargurados e desgostosos, deixam de confiar nos homens e perdem a fé num futuro feliz da Humanidade levando extremamente a sério a proposta infeliz e desesperançosa de Friedrich Nietzsche de que “Deus está morto”.
(2) Allan Kardec, complementando a resposta dos Espíritos à questão 754, vem reforçar a tese do princípio de bondade existente no imo de todo ser quando assim questiona os Espíritos: “A crueldade não derivará da carência de senso moral? Resposta: “Dize da falta de desenvolvimento do senso moral; não digas da carência, porquanto o senso moral existe, como princípio, em todos os homens. É esse senso moral que dos seres cruéis fará mais tarde seres bons e humanos. Ele, pois, existe no selvagem, mas como o princípio do perfume no gérmen da flor que ainda não desabrochou”.
Fato do cotidiano violento das grandes cidades modernas confirma ainda mais a assertiva Kardequiana acima descrita. Tornou-se “viral”, recentemente, um vídeo obtido por câmera de segurança de um bairro da cidade de São Paulo. Abraçadinhos e distraídos descia a rua um casal de namorados. Eis que, de repente, surge uma moto com dois homens e o da garupa desce, já de arma em punho, anunciando um assalto. Pegos de surpresa a jovem recua segurando sua bolsa e o namorado, assustado, foge em desabalada carreira deixando sua companheira ali sozinha com os malfeitores. O homem, em atitude violenta, rouba a bolsa das mãos da jovem deixando-a acuada e só. Rapidamente o infeliz sobe na garupa da moto para escapar, mas, não se sabe por que, vira o rosto na direção por onde o namorado dela fugiu e não mais o vê. O condutor da moto então acelera para arrancar com o veículo, porém o ladrão, talvez por uma inspiração divina, torna a olhar para aquela mulher atônita, parada e indefesa, fala algo com ela que não se consegue ouvir e, surpreendentemente, devolve à jovem a bolsa com todos os pertences dela e se evade do local em alta velocidade.
Este fato protagonizado por um ser infeliz e ainda preso às malhas do crime, expressa realmente um sentimento íntimo de compaixão que, não aconteceu no Natal, mas que se assemelha a esta trégua natalina que faz com que todos os homens deixem aflorar pelo menos, um pouquinho, seu oculto potencial de amor universal.
(3) “Penso em Natal. No teu Natal. Para a Bondade a Minh’ alma se volta …” Assim, Manuel Bandeira traça as primeiras linhas de seu aclamado e homônimo poema exaltando o Amor, o sentimento mais puro e cândido do ser humano, que mais nos aproxima do Criador de Todas as Coisas.
(4) E, para mantermos indelével em nossa memória a mediunidade missionária de Chico Xavier o médium mais fiel a Jesus que conhecemos, relembraremos os versos, a ele ditados pelo Espírito João de Deus:
– Na Noite de Natal –
“Minha mãe, porque Jesus,
Cheio de amor e grandeza
Preferiu nascer no mundo
Nos caminhos da pobreza”?
Porque não veio até nós
Entre flores e alegrias,
Num berço todo enfeitado
De sedas e pedrarias?
Acredito, meu filhinho
Que o Mestre da Caridade
Mostrou, em tudo e por tudo,
A luminosa humildade.
Às vezes, penso também,
Nos trabalhos deste mundo,
Que a Manjedoura revela
Ensino bem mais profundo.
E a pobre mãe de olhos fixos
Na luz do céu que sorria
Concluiu com sentimento
Em terna melancolia:
– “Por certo, Jesus ficou
Nas palhas, sem proteção,
Por não lhe abrirmos na Terra
As portas do coração.”
NOTAS
- THEODORO, Reinaldo V. A Trégua de Natal. In: Clube SOMNIUM, 2004. p.4.
- KARDEC, Allan – “O Livro dos Espíritos” – Questão 754-Cap. VI pag.341- FEB 93ª edição (Edição Histórica) 5/2016.
- BANDEIRA, Manuel, “Testamento de Pasárgada: antologia poética”; Ivan Junqueira, 3ª edição – SP; Ed. Global, 2014.
- XAVIER, Francisco Cândido / Esp. Diversos- Livro “Antologia Mediúnica do Natal” -Cap. 20– “Na Noite do Natal” -Esp. João de Deus.
Adorei o artigo! Muito bem escrito e me trouxe ótimas reflexões.