Educação da alma: competência de quem?

Vinícius Lara

A pergunta deste pequeno artigo é antes de mais nada uma inquietação para todo aquele que se dedica à prática espiritual de qualquer natureza. Partindo do axioma de que há algo no sujeito que preexiste à encarnação, se modela e aperfeiçoa durante a existência e progride após a morte, educar a alma seria o mote fundamental desse longo processo de ampliação da consciência na direção da verdade, da justiça e do amor. Mas a quem caberia essa função? É um pouco do que tentarei abordar nas próximas linhas.

Inicialmente – como partimos de um horizonte de pensamento espiritualista –, é necessário abrir mão do mito da “página em branco”,[1]que prega a ideia de uma inocência essencial atribuída às crianças. Pela lógica da reencarnação, os Espíritos não têm idades calculáveis, sendo de nenhum auxílio tentar imaginar quais seriam aquelas “almas novas” ou “antigas”, com as quais temos contato, afinal, há uma imensa noite de milênios reencarnatórios atrás de cada um de nós. Por essa ótica, a resposta à pergunta inicial de nossa conversa é radical (aqui tomando o termo no sentido de raiz): a educação da alma cabe sempre e inalienavelmente a ela mesma, por meio de suas escolhas e das consequências de suas escolhas. Mas seria simples assim? Creio que não.

Apesar de existir na natureza do Espírito o livre-arbítrio, que lhe permite escolher quais caminhos trilhar, também é verdade o fato de que há toda uma engrenagem de caráter social que perpassa nossas existências no mundo, fazendo com que, de modo dialético, tanto a realidade espiritual quanto a material se perpassem e se interpenetrem, gerando um movimento de aperfeiçoamento coletivo.

Ortega y Gasset faz a síntese da ideia que pretendo defender de modo fantástico quando afirma, na introdução de seu livro Meditaciones del Quijote, de 1914: “Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Desse modo, precisamos olhar para a dinâmica entre ideal, ética e meio social toda vez que pensamos em qualquer processo de educação, ainda mais quando esse percurso se pretende pelas vias do Espírito. Dito isso, podemos responder de outra forma a nossa pergunta: a educação da alma cabe essencialmente a ela mesma, porém sempre amparada – estimulada ou confundida – pelo seu entorno e pelas suas relações afetivas e sociais.

Quando reconhecemos a função das relações interpessoais e, por consequência, das relações sociais na educação da Alma/Espírito, olhamos frontalmente para o problema, qual seja: para se criar um percurso de “salvação”individual, é indispensável o olhar de uma ética coletiva. Sendo assim, o processo educativo da alma se inicia – tendo como referência esta encarnação – no seio doméstico que a recebe, sendo ali o local onde ela deve apreender os primeiros registros da humanização (andar sobre dois pés, falar, se comunicar gestualmente) e os moldes daquilo que será futuramente sua moralidade individual.[2] Tudo isso por via do exemplo e da observação de seus pais – ou daqueles que cumprem as funções parentais –, o que reforça uma vez mais o enunciado contido na questão 582 de O Livro dos Espíritos, que associa a paternidade/maternidade a missões, sendo função dos responsáveis encaminhar o Espírito que lhes necessita do amparo ao bom e ao justo.[3]

Aqui cabe um espaço para algumas digressões relevantes sobre esse “bom” para o qual a educação deve nos conduzir. A noção de bondade é bastante plástica e vai variar significativamente entre culturas distintas, e mesmo dentro da mesma cultura. Quando falamos em conduzir as almas ao bem, nos referimos a um “bem viver, pautado no cuidado de si e dos outros”, bem ao modo de uma estilística do viver, conforme a máxima de Jesus.

O tema é complexo, eu sei, mas é importante que se destaque o fato de que é pelo caminho da educação doméstica/familiar que se constrói a possibilidade da confecção de um ideal do eu mais aberto e capaz de olhar para o futuro com vistas a crescer e se aperfeiçoar: uma noção de si, capaz de opor aos impulsos primitivos de satisfação outros destinos que não sejam aqueles mais rudes e violentos. Pensar o bem viver e o bem agir, em oposição à simples satisfação dos desejos, é exatamente o que permitirá ao Espírito maduro escolher com assertividade no futuro. Vivemos numa realidade coletiva, de modo que a educação da alma se inicia no lar, para se ampliar posteriormente por essas pluralidades com as quais deveremos lidar.

Após esse momento inicial, que podemos chamar sociologicamente de socialização primária, somos apresentados cada vez mais aos estímulos do “mundo lá fora”. Escola, templos, clubes, amizades, ambiente de trabalho, enfim, cada novo circuito de relações estabelecido pelo sujeito será, por sua vez, novo horizonte de aprendizados possíveis, podendo reforçar, desconstruir ou dialogar com aquela educação primeira, recebida em casa. É nesse momento que o Espírito vive seus maiores desafios existenciais, ao precisar fazer escolhas, muitas vezes acertar, outras errar, mas cada vez mais sentir-se responsável por si mesmo.

A beleza de todo o processo parece surgir exatamente do fluxo das experiências, porque é na interseção entre existências que se iniciam e outras que já vão adiantadas que podemos aprender e apreender da condição humana, seus desafios, limites, e também das sublimações possíveis para as nossas intensidades, por meio do caminho da espiritualização e do contato com Deus. Desde o início do mundo, é por essa dinâmica que a vida se renova, e não há novidade alguma no que escrevo, senão, talvez, uma suposta responsabilidade maior por parte de quem se considera praticante espiritual em perceber esses movimentos e aproveitá-los da melhor forma possível.

Se torna urgente refundar a responsabilidade e o valor do coletivismo e de nossa cota pessoal em sua edificação, com a finalidade de trazer ao concreto da existência aquilo que permanece no campo da ilusão bem-intencionada de uma “religiosidade gourmet”. Nas relações entre amigos, alunos, colegas de instituição espírita, mas sobretudo com nossas crianças, é preciso resgatar o contato com essa humanidade presente no cuidado de si e no cuidado do outro. Em síntese: compete à alma educar a alma sob os atentos olhares de Deus.


[1] Cf. O mito da manifestação espontânea. CHRISTIANO. A Educação entre dois mundos: saberes espirituais dedicados à prática da evangelização infanto-juvenil. [psicografado por] Vinícius Lara. Mário Campos: Grupo Espírita da Benção, 2016.

[2] FREUD, Sigmund. O Eu e o Isso. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2006.

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