Diálogo inter-religioso: a experiência de Paulo em Atenas

Daniel Salomão

Casos de intolerância religiosa têm sido divulgados na imprensa, o que nos chama a atenção. Mesmo alguns cristãos têm demonstrado essa prática infeliz ao ofender adeptos de religiões afrobrasileiras, bem como ao atacar e destruir terreiros, o que mostra não terem compreendido adequadamente a proposta de Jesus. Nos tempos atuais, em que o diálogo inter-religioso ganha corpo, é cada vez mais necessária a interação pacífica entre religiosos de diferentes tradições.

Na contramão dessa incompreensão, destaca-se a figura de Paulo de Tarso. Tendo sido ele próprio um exemplo de intolerância perante os primeiros cristãos, sabia muito bem a que direções esse radicalismo podia conduzir. Conhecia também a posição contrária. Ao abraçar a proposta cristã, passou de perseguidor a perseguido, de algoz a vítima, experimentando na própria pele o que havia proporcionado anteriormente aos que pensavam de forma diferente. Neste texto, destacamos a visita de Paulo a Atenas (At 17:16-34), episódio que nos oferece bela oportunidade de reflexão sobre o diálogo respeitoso entre adeptos de diferentes tradições religiosas, ainda que o objetivo do apóstolo fosse proselitista, o que, em geral, não é o objetivo do diálogo inter-religioso.

Em sua segunda viagem, após breve e turbulenta passagem pelas cidades de Tessalônica e Bereia (At 17:1-15), na Macedônia, Paulo se viu diante da oportunidade de levar a mensagem cristã a Atenas. Ainda em Tarso, cidade de cultura predominantemente grega, o apóstolo havia tido contato com as tradições helênicas e se impressionado com sua riqueza, alimentando “o desejo de conhecer-lhe os monumentos gloriosos, os templos soberbos, o espírito sábio e livre.”[1] Todavia, seu desejo agora era outro. Falaria de Jesus aos filósofos, aos sábios, que acreditava serem afeiçoados às questões de ordem espiritual.

Ao entrar na cidade, tomado por alguns como um mendigo, de pronto confirmou suas expectativas sobre a beleza de seus monumentos e ídolos. Porém, logo veria suas outras expectativas frustradas. Na praça pública, ao referir-se a Jesus e à ressurreição, viu-se alvo de gargalhadas e ironias. Resiliente, “por mais de uma semana perseverou nas pregações públicas sem resultados apreciáveis.”[2] Se o desinteresse dos atenienses pelo que pregava não se configurava como intolerância, dada a liberdade de consciência de cada um, os deboches, sim. Esse comportamento seria ainda intensificado no discurso de Paulo no Areópago, para uma plateia mais erudita, como veremos.

Ao ser conduzido a essa espécie de tribunal, frequentado pela elite intelectual de Atenas, impressionou o auditório ao expor suas ideias com nobreza. Logo na abertura do discurso, podemos observar sua postura tolerante e respeitosa perante a religiosidade do outro:

Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: ‘Ao deus desconhecido’. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos (At 17:22-23).

É interessante como Paulo inicia sua fala valorizando a religiosidade ateniense. Ainda que, intimamente, não reconhecesse nos ídolos e práticas rituais gregas compatibilidade com suas crenças, admitia-os como demonstração de interesse pelo espiritual. Ademais, parte de um elemento do próprio contexto grego, o “deus desconhecido”, para embasar suas ideias. Se para eles havia um deus a conhecer, desse falaria Paulo.

Muitas vezes observamos a confusão entre duas atitudes, concordar e respeitar, como se fossem sinônimas. Não o são. Afinal, é possível discordar sem desrespeitar o outro, expor suas ideias, ainda que opostas, de forma fraterna. É o que demonstrou o Apóstolo dos Gentios. Após iniciar o discurso, como vimos, apresentou sucintamente o entendimento judaico-cristão de Deus:

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá vida, respiração e tudo o mais (…). Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ‘Porque somos também de sua raça’. Ora, se nós somos de raça divina, não podemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, a uma escultura da arte e engenho humanos (At 17:24-25, 28-29).

Logo, de forma oposta a boa parte das práticas e crenças religiosas gregas, Paulo apresenta um Deus único, imaterial, que não habita templos, pois está em toda parte, que não necessita de oferendas, visto já ser “Senhor do céu e da terra”. Demonstrando erudição, é capaz de citar o filósofo grego Epimênides (“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos”) e os poetas Cleanto e Arato de Solos (“Porque somos também de sua raça/geração”), identificando na própria cultura helênica bases para seus argumentos. Interessante é a forma como dialoga, dando importância à cultura alheia sem concordar com ela, apresentando seu entendimento sem desvalorizar o do outro.

Entretanto, a continuação do discurso incomodou os atenienses:

Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça, por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos. Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros diziam: “A respeito disto vamos ouvir-te outra vez”. Foi assim que Paulo retirou-se do meio deles (At 17:30-33).

A despeito de suas crenças particulares sobre um futuro “julgamento” e de seu entendimento sobre o que efetivamente significava “ressurreição” (1Cor 15), Paulo agora apresenta Jesus enquanto aquele que, após ser executado, apareceu vivo, demonstrando, em verdade, o que acontece com todos nós, Espíritos imortais. Contudo, o que ocorre em seguida é exatamente o oposto do que se deve fazer em um diálogo. Os interlocutores zombam e ironizam as ideias de que discordam, afinal, “a aristocracia intelectual ateniense não podia ceder nos seus preconceitos científicos.”[3]

Nesse ponto, aprendemos outra coisa com Paulo: como reagir perante a intolerância. O missionário apresenta a outra face, como propunha Jesus (Mt 5:38-42). Diante do mal, apresenta a face do bem, lembrando que essa proposta não é uma interdição à autodefesa, mas uma condenação da vingança.[4] Respeitando a liberdade de cada um, sai em silêncio do Areópago já quase vazio, sem devolver os deboches e as ironias, afinal, agir dessa forma seria contradizer o cerne da proposta que trazia, a de amar ao próximo como a nós mesmos.


[1] XAVIER, Francisco C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel, 23a ed., Rio de Janeiro: FEB, 1987, 2a p., c. 6.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1a ed., Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 12, i. 8.

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