Sobre arte e Espiritismo
Rogéria Olimpio dos Santos1
No documento Orientação ao Centro Espírita disponibilizado pela Federação Espírita Brasileira encontramos desde o ano de 2021 um capítulo, o de número 3, destinado à Área de Arte. Ainda em fase de construção, quando não de implantação, em muitas instituições é um setor que ainda gera dúvidas sobre a sua necessidade, viabilidade ou até mesmo seriedade.
Necessidade porque muitas pessoas acreditam que Espiritismo deve se preocupar com as questões da mediunidade, da evangelização do espírito, da assistência espiritual ou social e não entendem o que a Arte tem a ver com isso. Viabilidade porque nem sempre existe material humano preparado para se trabalhar a Arte nas casas espíritas e, quando existe, nem sempre a formação artística está associada a uma formação doutrinária ou evangélica sólidas. Seriedade porque ainda existe um bloqueio gerado ao longo da nossa existência, bloqueio esse que ensina que devemos ter cuidado com a expressão das emoções ou com expressões subjetivas. Afinal de contas, ao longo da história temos aprendido que é necessário aprendermos a ser racionais. E, aparentemente, Arte não tem nada a ver com razão. Por que então, neste período tão delicado em que vivemos, onde as criaturas estão profundamente necessitadas de amparo, devemos nos preocupar com a implantação de uma área de Arte? Em que isso pode contribuir para o nosso desenvolvimento? É o que pretendemos discutir aqui ao longo de uma série de conversas sobre Arte e Espiritismo.
Quando falamos de Arte em nossa formação escolar básica, ela é geralmente utilizada como uma primeira forma de expressão quando ainda não dominamos os códigos da linguagem e da escrita. Temos contato com desenhos, músicas, encenações que gradativamente vão sendo substituídos pelos recursos do letramento, da linguagem. Nesta fase, a Arte passa a ser vista como um acessório, um recurso de fixação para os conteúdos trabalhados nas escolas. Nas casas espíritas temos a repetição deste mesmo evento. Regra geral a Arte é vista como mais um recurso, geralmente utilizado na evangelização da criança e do jovem, nas situações em que a ludicidade tem espaço. Ou ainda nos momentos de harmonização antes e depois das reuniões. Nada contra esse uso. Mas será que não está faltando da nossa parte um conhecimento mais claro dos motivos ou objetivos da Arte? Aliás, será que realmente sabemos o que é a Arte.
Segundo Nicola Abbagnano em seu dicionário de filosofia, Platão entendia arte como “um conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer”. Mas essas regras existiam com a finalidade de se alcançar o ‘bem’, entendido aqui como o ‘melhor’ que se poderia alcançar naquela atividade que estava sendo desenvolvida. A ideia de beleza estava associada a essa ideia de ‘bem’. Beleza aqui no sentido estético, mas também no sentido que se relaciona com a harmonia, a ordem o equilíbrio, elementos encontrados na natureza quando algo é “bem-feito ou executado”. A criação divina é assim. Lembra um pouco a definição de André Luiz no capítulo 44 do livro Conduta Espírita, “a arte deve ser2 o Belo criando o Bom”.
Chegamos aqui em outro ponto da questão. Já vi pessoas negando a Arte no movimento espírita com a justificativa de que o que era produzido não era de acordo com o que os espíritos superiores ensinavam e já vi artistas justificando que a Arte enquanto criação é algo que “não deve ser questionado” uma vez que é a visão do artista que está sendo expressa. Vamos lá! E vamos com calma.
Desde o século XVI foi sendo construída gradativamente a ideia de genialidade artística. Espíritos realmente inspirados e atuando em missões que tinham como objetivo contribuir para o desenvolvimento da humanidade reencarnaram trazendo cada um deles o reflexo daquilo que já tinham construído em si. Acontece que, o gênio melancólico, não entendido pela sociedade, não é necessariamente alguém que alcançou altos níveis de desenvolvimento espiritual. Ou seja, o gênio da Arte ou da Ciência não é obrigatoriamente alguém que está acima da humanidade. Os artistas são espíritos que dominam formas de expressão que muitas vezes a nossa sociedade ocidental, materialista entende como sendo não necessárias para a sobrevivência e por isso também, alguém que domina essas formas de expressão são vistos como seres acima do normal.
Nas aulas de História da Arte, costumo definir Arte para meus alunos como sendo “toda forma de expressão da cultura de um povo numa determinada época, num determinado lugar e sob determinadas circunstâncias”. Optei por utilizar essa definição porque ela abre um leque onde é possível estudar a Arte dos diversos povos ao longo da História sem cairmos nas armadilhas do gosto pessoal ou do preconceito. Mas o que essa definição interfere no nosso entendimento da Arte em relação com a Doutrina Espírita? Aliás, o que essa ‘viagem’ que fizemos até agora traz de informações úteis para a implantação da Área de Arte? Vamos concluir.
Vemos muitos artistas querendo levar para o movimento espírita a “sua arte” sem se darem conta de que a sua produção, a sua obra não está expressando aquilo que a Doutrina Espírita traz. Vemos muitos espíritas colocando o texto espírita em trabalhos de qualidade artística frágeis, fruto de uma formação também frágil. Arte diz respeito à educação da sensibilidade. A sensibilidade pode sim ser educada e ela se desenvolve à medida em que o espírito evolui. Vemos criaturas que em uma existência apresentam alto desenvolvimento intelectual, mas que moralmente estão muito aquém do desejado. Da mesma forma encontramos espíritos muito bons, mas que não alcançaram ainda o desenvolvimento do intelecto. O desenvolvimento da sensibilidade caminha junto com o desenvolvimento intelectual uma vez que lida com a percepção das linguagens não faladas, ou seja, trabalha setores da mente humana distintos daquele que trata do conhecimento lógico, da escrita, da linguagem. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento moral do espírito, moraliza também aquilo que ele produz. Se a Arte é toda forma de expressão humana refletindo o seu tempo, o lugar e as circunstâncias que a cercam, quando o nosso planeta estiver regenerado, ela expressará aquilo de melhor que existirá em nós refletindo o desenvolvimento já alcançado por nós. Mas enquanto isso não acontece, precisamos colaborar para o desenvolvimento de cada um de nós, espíritos em trânsito pela Terra. Desenvolvimento intelectual, moral, sensível; educação da alma, nos mais variados aspectos. É por isso que a casa espírita é uma escola, um hospital e uma casa. E é por isso que a Arte deve ser seriamente pensada nas casas espíritas, porque ela reflete o conhecimento e o desenvolvimento construído por cada um. Enquanto o resultado não é o que esperamos, que possamos fornecer os recursos e ferramentas necessários para que um dia possamos nos expressar entendendo que nossas ações devem sempre estar a serviço do bem.
1 Rogéria Olimpio dos Santos. Professora de Arte e História.
2 Grifo meu.