Controle Universal do Ensino dos Espíritos – um exemplo
Daniel Salomão Silva
Em artigo que publicamos nesta revista,1 destacamos a importância do método aplicado por Kardec ao lidar com as comunicações atribuídas aos Espíritos. Neste texto, apresentamos um exemplo de seu uso pelo próprio Codificador. Para ele, considerando a diversidade de aptidões e intenções entre os desencarnados, aceitar indiscriminadamente qualquer mensagem mediúnica como verdade absoluta não é prudente. Afinal, essas comunicações, com exceção das de teor exclusivamente moral, têm “caráter individual, sem cunho de autenticidade, que devem ser consideradas como opiniões pessoais de tal ou qual Espírito”.2
Para admitir seu conteúdo como seguro, sem o pré-julgamento de qualquer médium ou Espírito comunicante, Kardec propõe como primeiro controle “o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos”.3 Toda nova teoria deve apresentar lógica rigorosa, alinhamento ao bom senso e ao conhecimento já estabelecido. Nessa direção, mensagens que contenham “coisas absurdas ou triviais”, “sistemas excêntricos” ou “grosseiras heresias científicas” só devem ser divulgadas se acompanhadas de comentários que refutem seus erros ou destaquem-nas como opiniões individuais.4
O segundo crivo, que não prescinde do primeiro,5 é a verificação de conformidade entre as informações fornecidas pelos desencarnados. Segundo Kardec, “a única garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares.”6 Logo, ainda que não determine um número mínimo, entende como necessária certa repetição da informação para que mereça o título de “princípio da Doutrina.”7
Na edição de fevereiro de 1868 da Revista Espírita, Kardec reúne algumas comunicações de mesmo teor, que configuram “um dos mais notáveis exemplos da simultaneidade e da concordância do ensino dos Espíritos quando é chegado o momento de uma revelação”, recebidas “em diferentes centros espíritas da França e do estrangeiro.”8 A mensagem que abre o conjunto, recebida na Argélia, em 1861, destaca os dois temas principais da lista: a iminente transformação da Humanidade e a encarnação de um ou mais “messias” que a presidirão. A tabela abaixo resume a abordagem desses temas nas 13 mensagens registradas, na sequência escolhida por Kardec e aqui identificadas por seus autores e anos de publicação:
Mensagem | Transformação da Humanidade | Vinda do Messias | |
Único | Vários | ||
São José, 1861 | X | X | |
Fénelon, 1861 | X | X | |
Baluze, 1862 | X | X | |
Lacordaire, 1862 | X | X | |
?, 1866 | X | X | |
São Luís, 1862 | X | X | |
Lammenais, 1862 | X | X | |
Erasto, 1863 | X | X | |
Montaigne, 1865 | X | ||
Dupuch, 1863 | X | ||
João, 1866 | X | ||
Erasto, 1861 | X | ||
C. Duplantier, 1867 | X |
A partir da tabela acima, identificamos unanimidade quanto a um dos temas, porém pequenas divergências com relação ao outro. A expectativa de transformação da Humanidade, presente em todas as mensagens, já era bem estabelecida na Codificação Espírita, toda ela publicada antes de fevereiro de 1868. Se o Espírito C. Duplantier (1867) afirma que “é a uma dessas grandes épocas que marcam o término de um período e o início de outro que vos é dado assistir”, alguns anos antes, Kardec havia registrado diversas conclusões na mesma direção,9 o que nos permite considerar esse ponto já como um princípio do Espiritismo. Destaca-se apenas a mensagem de Fénelon (1861), única que especifica no século XX “o remanejamento da Humanidade”, expectativa também assumida por Kardec.10 As demais apenas ressaltam a proximidade dessa transformação.
Entretanto, o segundo tema é mais interessante para a nossa análise, justamente por haver diferenças entre os textos. Dentre eles, alguns defendem a vinda futura de um único messias, que “já nasceu” e “vai restabelecer as leis mal compreendidas e mal praticadas do Cristo” (São José, 1861); que, mesmo já encarnado, “ainda não está maduro para realizar sua missão” (Fénelon, 1861).11 Outros entendem que ainda virá (Lacordaire, 1862; São Luís, 1862), e será “capaz de dominar seus contemporâneos e de imprimir às gerações futuras as ideias necessárias para uma revolução moral civilizadora” (Baluze, 1862) e que pode ser ou não o próprio Jesus (São Luís, 1862; Erasto, 1861)12 ou o Espírito da Verdade (Lacordaire, 1862).
Outros parecem indicar a vinda futura de vários Espíritos na condição de “messias”. Segundo Erasto (1863), “novas raças saídas das altas esferas vêm turbilhonar em torno de vós, esperando a hora de sua encarnação messiânica”. Lacordaire (1862), que, como apontamos, destaca a proeminência de um “messias”, também nos fala de outros “messias principais” e “Espíritos de escol” que trabalharão pela regeneração da Humanidade. Na mesma direção, em mensagem obtida em êxtase sonambúlico (?, 1866), somos apresentados a uma hierarquização entre os “Espíritos superiores”, encabeçada por esses “messias”, “seres superiores que chegaram ao mais alto degrau da hierarquia celeste” e que concorrerão para a mudança que se opera. As últimas cinco mensagens apenas tangenciam o assunto, mas indicam a ação dos bons Espíritos e as mudanças decorrentes.
Instrutivas são as conclusões do Codificador presentes na edição seguinte da Revista Espírita. Não descarta as mensagens por encontrar pontos exclusivos ou que entende como equivocados, mas deixa de lado os detalhes particulares – enquanto opiniões individuais – e destaca os pontos de interseção. Essa postura é também interessante perante textos maiores, como livros psicografados, que podem conter informações equivocadas e corretas concomitantemente. Um único ponto não é suficiente para invalidá-los ou, ao contrário, isentá-los de análise. Pelo o que conhecemos de mediunidade, vários são os fatores que nos convidam ao cuidado, como tinha Kardec.13
Como já havíamos comentado sobre o tema da transformação da Humanidade, Kardec também conclui que a “ideia da vinda de um ou vários messias era mais ou menos geral”.14 Todavia, usando de razão, percebe o equívoco de se entender tudo literalmente, como parece ter sido a postura de outros espíritas da época, que talvez esperassem a reencarnação do próprio Jesus. Em verdade, defende a ação dos “messias” ou “grandes Espíritos” também enquanto desencarnados, não necessariamente vivendo fisicamente entre nós. Contudo, a partir de sua análise das mensagens, concorda que “virão [reencarnarão] mais utilmente quando a obra [Doutrina Espírita] estiver elaborada e o terreno preparado”, “que já a presidem como Espíritos e que terminarão sua missão como encarnados”, sem que sua vinda seja assinalada por sinais extraordinários. Serão, sim, reconhecidos pela grandeza de suas obras nos mais diversos campos.15
A postura de Kardec, exemplo de aplicação de seu método, é lição para nós ainda nos dias de hoje. Em nossa opinião, dessa breve análise que apresentamos, mais interessante que suas conclusões positivas é o que não se permite concluir, ou seja, o que não assume como princípio espírita, por não encontrar concordância ou racionalidade. Por exemplo, não se atém ao uso específico da palavra “messias”, nem ao seu número exato, nem à sua identificação (Jesus, Espírito da Verdade ou qualquer outro), nem a se já está encarnado. Esse cuidado deve ser mantido por nós perante informações que derivam de poucos médiuns e Espíritos, que podem até se confirmar no futuro, mas que, se não passaram pelo Controle Universal do Ensino dos Espíritos, não oferecem ainda a segurança de um princípio do Espiritismo. Nesse caso, não as desprezemos, mas aguardemos com paciência e atenção.
1 SILVA, Daniel Salomão. Divulgação das comunicações mediúnicas. Revista O Médium, AME/JF, n. 754, p. 6-8, nov/dez de 2023.
2 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, introdução, II.
3 Idem.
4 KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Allan Kardec. Rio de Janeiro: FEB, 2005, Instruções particulares…, VI.
5 KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano XI: 1868. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, março.
6 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, introdução, II.
7 Idem.
8 KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano XI: 1868. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, fevereiro.
9 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2. ed., Rio de janeiro: FEB, 2010, q. 1019; KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 3 etc.
10 KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano XI: 1868. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, março.
11 Outra mensagem, publicada em maio do mesmo ano, também afirma que o “messias” já nasceu.
12 Erasto parece indicar uma ação espiritual de Jesus, não sua reencarnação.
13 KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2008, 2. p., c. 19 a 21, 24 a 28.
14 KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano XI: 1868. Catanduva, SP: EDICEL, 2018, março.
15 Kardec volta ao tema em dezembro do mesmo ano, discutindo a possibilidade de um desses “messias” estar à frente administrativamente do Movimento Espírita.