E se você fosse você?

A desafiadora arte de se conhecer

Isso de querer ser exatamente aquilo que
a gente é ainda vai nos levar além.1

Sheila Mara

Talvez dos mais celebrados versos do poeta brasileiro Paulo Leminski, o poema “Incenso fosse música” realiza a desconcertante tarefa de incomodar a quem o lê com a cabeça e com o coração, por ressoar o grande desafio que acompanha a Humanidade há séculos: a questão do autoconhecimento. O que se nota, todavia, é que o movimento que deveríamos realizar para dentro tem sido revertido para fora de nós, como forma de não aprofundarmos em nossa realidade emocional e espiritual.

Diante dos desafios e dores da vida, seguimos adiando soluções que exigem profundidade e, dessa forma, damos espaço para novos problemas e novas dores. Isso porque nos deparamos com o medo de verticalizar o exame das causas que geram nossas emoções, conflitos, escolhas e atitudes e de enfrentar essas causas com decisões firmes. Por que não vivemos definitivamente o que sabemos? Por que não nos tornamos aquilo que almejamos? Essas questões merecem ser pensadas, pois impactam diretamente em nosso processo de transformação moral, muitas vezes percebido sob uma perspectiva essencialmente reducionista do ser humano. Agimos como se pudéssemos identificar algo a ser trabalhado em nós e, de igual modo, mudar esse algo com a facilidade com que se gira uma chave. Como se conseguíssemos sair do estado egoísta para o caridoso, do orgulhoso para o humilde em um salto.

Mas o que a doutrina espírita, alicerçada no Evangelho de Jesus, vem nos ajudar a entender é que há um percurso trabalhoso no meio do caminho e que, quando realizamos esse salto, a transformação que empreendemos é apenas exterior e não interior. Isso é o que a psicologia apresenta como sendo a persona: “Eu, que sou uma pessoa orgulhosa, consigo lidar com o meu orgulho mostrando-me uma pessoa humilde”. Na verdade, ainda não é transformação moral. O que realizamos foi a mudança do sujeito orgulhoso para uma persona de humildade, que esconde o sujeito orgulhoso que sou.

Na instigante questão 793, de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec indaga aos amigos espirituais por que sinais se pode reconhecer uma civilização completa. A resposta encerra grande carga de ensinamento,pois somos convocados a estabelecer uma reflexão entre desenvolvimento INTELECTUAL e desenvolvimento MORAL, bem como sobre o papel de cada um no progresso da Humanidade.

Aí, colhemos a informação de que a transformação moral requer uma mudança estrutural do ser humano e não apenas uma mudança na aparência das atitudes. Há uma desconstrução da forma como se entende esse processo, tanto que Kardec, dessa vez em A Gênese (cap. XVIII, item 16), estende a reflexão:

“O progresso intelectual realizado até o presente, nas mais largas proporções, constitui um grande passo e marca uma primeira fase do avanço geral da Humanidade; impotente, porém, ele é para regenerá-la.” [grifo nosso].

A capacidade de pensar, aprender, usar a lógica, descobrir, inventar configura somente a primeira fase que, nas palavras do codificador, é impotente para regenerar a Humanidade. A racionalidade traz discernimento quanto às nossas respostas em relação às diversas situações da vida, mas sozinha não é suficiente para promover transformação moral.

Podemos exemplificar assim: alguém nos ofende e a racionalidade diz que não devemos revidar, pois Jesus ensina o perdão. A razão ajuda a lidar com o externo, a esconder de nós e do outro a carga emocional gerada pela ofensa recebida, mas a mágoa ainda habita nosso mundo íntimo, alojada, muitas vezes, no inconsciente, apesar de carregarmos a ideia de que, ao não respondermos agressivamente a quem desencadeou a ofensa, conseguimos trabalhar o conteúdo.

Se o intelecto é impotente para regenerar a Humanidade e promover transformação moral, o que fazer então? Voltamos ao início de nossa reflexão, ancorando-a, dessa vez, na tão conhecida questão 919 de O Livro dos Espíritos, quando os benfeitores espirituais retomam a máxima: Conhece–te a ti mesmo. De forma alguma descartamos aqui a importância e o valor do estudo, mas ompartilhamos com o(a) leitor(a) amigo(a) a necessidade de, a partir dos conhecimentos construídos, voltarmo-nos para dentro de nós mesmos com atitude corajosa e sincera, olhando-nos pouco e pouco no sentido de perceber que a solução fundamental de todos os problemas da vida surgirá de nós mesmos.

1 LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
2 Trecho adaptado da fala de Emmanuel, extraído do cap. 6 do livro Ceifa de Luz.

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *