O necessário retorno aos centros espíritas
Daniel Salomão Silva
O recente período de pandemia foi carregado de lições para o Movimento Espírita. Além dos convites à reflexão íntima, derivados das necessidades de isolamento, do cuidado com a própria saúde e do lidar com a desencarnação de entes queridos, surgiram ou se intensificaram formas de interação on-line muito importantes. Graças a elas, mesmo com os centros espíritas fechados, a divulgação espírita permaneceu, esclarecendo e consolando. Todavia, com o fim da pandemia, muitos espíritas optaram por não retornar às atividades presenciais pelos mais diversos motivos, o que, naturalmente, deve ser respeitado. Entendemos, porém, que a participação remota, mesmo em grupos sérios em que há diálogo e aprofundamento, deve ser pelo menos complementada pela presença física nas instituições espíritas. Esse texto traz um convite à meditação sobre a importância desse retorno.
De início, é importante refletir sobre como o espírita compreende sua relação com o centro espírita. As demais tradições cristãs, ainda hoje, entendem o templo como central em sua vivência religiosa. Segundo a doutrina católica, por exemplo, é um dever “participar da missa inteira aos domingos”i. Para boa parte das religiões protestantes, ainda que não entendam a instituição religiosa apenas como conjunto de cerimônias e símbolos, “o corpo de Cristo se reúne em espaços institucionais”, logo é fundamental a frequência do fiel aos cultos, sua participação na comunidade.ii Mesmo as vertentes pentecostais mais recentes, pioneiras e competentes na divulgação religiosa em mídias de todo tipo, têm na relação institucional algo central: ofertas (dízimo), exorcismos, curas públicas ou mesmo shows, ainda quando também transmitidos pela televisão ou internet, demandam a participação presencial dos fiéis.iii Contudo, o pensamento espírita vai nessa direção?
Acreditamos que todos os cristãos, independentemente do valor que dão à frequência à instituição religiosa, entendem a prática cristã como um dever constante, em qualquer tempo e em qualquer local. Afinal, como aponta Jesus à mulher samaritana, que lhe perguntava sobre o lugar mais adequado, a adoração a Deus deve ser, acima de tudo, “em espírito e verdade” (Jo 4:24), o que independe de templos. Também o Espiritismo, ao ter por bandeira “fora da caridade não há salvação”,iv assegura a prioridade da vivência das leis de Deus sobre qualquer exigência institucional. Ao nos descrever o “homem de bem” e os “bons espíritas”,v Kardec vai além: nem sequer cita como sua característica a frequência a um centro espírita, o que nos permite compreender como possível ser verdadeiramente espírita sem frequentá-lo. Logo, em comparação às tradições cristãs que citamos acima, a Doutrina Espírita é realmente menos exigente nesse aspecto. Todavia, isso não significa negar a importância das instituições.
Como aponta Kardec, “há criaturas que negam a utilidade das assembleias religiosas, e, por conseguinte, dos edifícios consagrados a tais assembleias”, entendendo que, se Deus está por toda a parte, melhor é cada um orar em sua casa e dedicar instituições a “pobres e enfermos”.vi A essa ideia, o Codificador contrapõe alguns argumentos.
Em primeiro lugar, ao debater o caráter religioso espírita, Kardec não o defende aos moldes das religiões tradicionais, mas como fundamentado nos “laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos”.vii Naturalmente, o centro espírita é um excelente local para isso. Ali é possível colher “os benefícios da comunhão de pensamento que deve ser a essência das assembleias religiosas”viii e, nesse sentido, orar em conjunto, atraindo com mais força os bons Espíritos.ix Como bem apontou o Codificador, mesmo que o ensinamento espírita possa ser dado em qualquer parte, “sob a abóbada do céu como sob a de um templo”, por que não reservar locais especiais para as reflexões de cunho espiritual e moral?x Nessa direção, o centro é também importante local de reuniões para estudos, afinal “qual o homem que poderia dizer-se bastante esclarecido para nada ter a aprender em relação a seus interesses futuros e suficientemente perfeito para dispensar conselhos na vida presente? É ele sempre capaz de instruir-se por si mesmo?”xi Sabemos que não. Em conjunto, percebemos nossos entendimentos equivocados ou incompletos sobre determinado tema, ensinamos e aprendemos, logo crescemos.
Porém, em atividades on-line não são possíveis todas essas coisas? Sim. É possível orar em conjunto, ter comunhão de pensamentos e, naturalmente, estudar. Entretanto, a partir das experiências compartilhadas nos últimos três anos, pensamos que talvez não haja na vivência exclusivamente virtual a mesma efetividade da frequência a grupos presenciais, pelo menos para boa parte de nós. No que se refere à educação, por exemplo, ainda que não haja consenso, já é discutível se o ensino remoto tem a mesma qualidade do presencial.xii
Além disso, estudos sérios, como os promovidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS),xiii já indicaram aumento ansiedade e depressão no período de isolamento, aumento esse que foi mitigado, mas não impedido pela “vida” exclusivamente on-line. Ao contrário, outras pesquisas têm apontado os benefícios à saúde física e mental da permanência em comunidades religiosas.xiv À frente de seu tempo, o próprio Kardec afirmou que “quando os homens compreenderem melhor seus interesses do Céu, haverá menos gente nos hospícios”.xv Afinal, é dessa vivência social, dos princípios religiosos e do apoio espiritual que muitas vezes adquirimos coragem para enfrentar as dificuldades cotidianas.
Se os argumentos acima concernem, principalmente, à frequência ao centro, os que se referem ao trabalho espírita são mais contundentes. Quanto à evangelização espírita, pensamos ser incomparável o grau de acolhimento possível presencialmente, a facilidade em compreender as demandas de crianças e jovens, o acesso a recursos pedagógicos e a adaptações necessárias. O mesmo se aplica à divulgação doutrinária aos adultos, principalmente em grupos de estudo, salientando ainda que o acesso à internet de qualidade não é universalizado em nosso país. Nesse sentido, no que toca aos trabalhos de assistência e promoção social, há longo tempo parte dos centros espíritas, pensamos ser fundamental a existência de grupos presenciais que levem, junto ao apoio material, o Espiritismo aos corações dos que buscam o centro em condições de vulnerabilidade (incluindo os “pobres e enfermos” a que se referiu Kardec em citação acima). Quanto ao trabalho mediúnico, bons argumentos já foram apresentados em favor da exclusividade de sua realização presencial.xvi Principalmente por questões de segurança do próprio médium, não nos parece conveniente a prática mediúnica virtual. Afinal, a ação protetiva dos Espíritos em torno da instituição espírita tem sido descrita há algumas décadas através dos médiuns brasileirosxvii, mas não sabemos se em todos os lares a mesma qualidade é sempre possível.
Concluindo, sem negar os ganhos da difusão espírita on-line, que veio para ficar, propomos grave reflexão sobre a importância de se retornar presencialmente às casas espíritas, em benefício próprio, do próximo e do Movimento Espírita. Além disso, os centros são, há décadas, muito mais que espaços de estudo e oração: são locais de trabalho, de prática efetiva da caridade nos mais diversos aspectos. Aos moldes das primeiras comunidades cristãs são, nas palavras de Suely Caldas Schubert, “templo e lar, hospital e escola”.xviii É hora de voltar.
i CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000, p. 384 e 537 (§1389 e §2042).
ii WESTPHAL, Euler R. Protestantes e católicos: diferenças e semelhanças… In: DIAS, Zwinglio M., et al (org). Protestantes, evangélicos e neopentecostais. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p. 82.
iii CUNHA, Magali N. Religiosidade midiática e novos paradigmas… In: DIAS, Zwinglio M., et al (org). Protestantes, evangélicos e neopentecostais. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p. 208.
iv KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010, c. 15.
v Idem, c. 17, i. 3 e 4.
vi KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 11: 1868. Catanduva: EDICEL, 2018, p. 407 (dezembro).
vii Idem, p. 410.
viii Idem, p. 407.
ix KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010, q. 656.
x KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 11: 1868. Catanduva: EDICEL, 2018, p. 407.
xi Idem.
xii ENSINO presencial é melhor que remoto. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2021. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/08/ensino-presencial-e-melhor-que-remoto-diz-astro-das-aulas-online-salman-khan.shtml. Acesso em 27/10/2023.
xiii OMS. Pandemia de COVID-19 desencadeia aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo. Paho.org/, 2022. Disponível em https://www.paho.org/pt/noticias/2-3-2022-pandemia-covid-19-desencadeia-aumento-25-na-prevalencia-ansiedade-e-depressao-em. Acesso em 27/10/2023.
xiv VANDERWEELE, Tyler J. Religious Communities and Human Flourishing. Current Directions in Psychological Science, Vol. 26(5) 476–481, 2017.
xv KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 11: 1868. Catanduva: EDICEL, 2018, p. 408.
xvi FEB. Inconveniência das reuniões mediúnicas virtuais. Febnet.org.br, 2021. Disponível em https://www.febnet.org.br/portal/2020/05/15/inconveniencia-das-reunioes-mediunicas-virtuais/. Acesso em 27/10/2023.
xvii As obras de André Luiz, pela mediunidade de Chico Xavier, e as de Manoel Ph. De Miranda, por Divaldo Franco, são bons exemplos.
xviii SCHUBERT, Suely Caldas. Dimensões espirituais do centro espírita. 2. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2012, p. 30.